quinta-feira, setembro 27, 2007

Mitos do "jacobinismo" (?), ou... do SALAZARISMO?


A propósito de um simples Artigo da “blogosfera” e dos comentários, muitos e apaixonados, que suscitou, verifico a permanência de um potencial de conflitualidade na Sociedade portuguesa no que toca a certos temas mais polémicos da nossa História recente, como a 1ª República e as “Lutas Liberais” (eufemismo consagrado para a nossa terrível Guerra Civil, cem anos antes da espanhola), já para não falar do Estado Novo e do Colonialismo, ou da própria Restauração.
Parece, aliás, que tudo o que respeita ao período pós-filipino é ainda muito polémico e se encontra mal digerido, de um modo geral, pela nossa opinião pública, desde o vulgar Cidadão ao meio jornalístico, intelectual e mesmo académico. De facto, se até Alcácer-Quibir de uma forma geral todos nós concordamos e até nos sentimos ufanos da nossa “História Pátria”, a consciência (ou a sub-consciência…) nacional ainda se encontra muito perturbada com tudo o que veio posteriormente, desde a progressiva perda do Império e da influência internacional, até ao nosso declínio enquanto Nação, social e culturalmente falando. Talvez até porque esse mesmo declínio, após o apogeu quinhentista, ainda não tenha terminado e não se vislumbre bem a que profundezas nos conduzirá…
Por outro lado, não pode ignorar-se a distorção que a implacável propaganda do Estado Novo, sobretudo ao nível do Ensino público, provocou na percepção comum dos factos históricos, dificultando ou mesmo impedindo a necessária investigação científica e a livre discussão destes assuntos, o que originou o avolumar de mitos e de autênticos tabus sobre certas matérias, deformando por muitas décadas uma interiorização consensual do nosso Passado histórico, muito importante enquanto factor de identificação e de unidade nacional. Tudo a pretexto de uma pretensa justificação “histórica” para um regime absolutamente injustificável e que, consequentemente, só provocará, a prazo, o oposto do que pretendia…
Tudo isto se agrava e amplia pelo facto de sermos um País culturalmente pequeno e muito pobre, sem capacidade de divulgação maciça da nossa História e até do ficcionamento contextualizado dos eventos históricos, como acontece na generalidade dos Países culturalmente desenvolvidos – veja-se o que é por exemplo o conhecimento dos factos históricos decisivos, sobretudo da fundação dos E. U. A., por parte da generalidade dos norte-americanos, ou o papel de Hollywood (ou, “entre nós”, da BBC) na criação de conceitos históricos consensuais, minimamente certificados pela comunidade científica e aceites pela generalidade dos Cidadãos, dispondo consequentemente de um elevado potencial integrador e colectivamente identificador para a respectiva população.
Em Portugal, sem indústria cinematográfica, sem criação literária ou dramática nem políticas editoriais, sem mercado cultural e sem grandes meios para a investigação histórica, a discussão destes temas não sai de um círculo restrito de entendidos (e alguns curiosos), que não têm força suficiente para contribuir para o desmantelamento dos mitos cuidadosamente forjados pelo muito prolongado e eficaz “tratamento” salazarista, sobretudo no tocante aos aspectos mais vincadamente ideológicos, relacionados em especial com as nossas relações históricas com a Espanha (e com a Inglaterra), com o Liberalismo, a Democracia, a República, o Estado de Direito e a separação entre o Estado e a Igreja Católica, claramente expressos numa aversão irracional e dogmática aos ideais libertadores das Revoluções americana e francesa, ao Liberalismo (passado apenas em voo rasante e envergonhado nos programas escolares, ainda no meu tempo) e, consequentemente, ao 5 de Outubro.
Excepções a este triste panorama, em termos de divulgação popular dos grandes temas históricos, para além de Camões, foram unicamente alguns autores românticos, em especial Alexandre Herculano, bem como, mais recentemente e a outro nível, os programas iniciais de José Hermano Saraiva na RTP, o que é manifestamente muito pouco.
Fica por isso a sensação de que resta ainda muito a discutir sobre a nossa História mais recente, de uma forma objectiva e desapaixonada, o que justifica a intensa troca de argumentos na caixa de comentários do referido “blogue”, a respeito do citado Artigo, apesar de um dos seus editores ter chegado a considerar esta discussão “um pouco apatetada”. Olha se o não fosse!...
Da leitura desse Artigo e respectivos comentários, alguns muito interessantes, posso modestamente adiantar que me parece carecerem desde logo de alguma clarificação séria os seguintes aspectos:
– Ninguém medianamente são e no seu juízo perfeito pode defender o regicídio, ou qualquer outro homicídio, enquanto acto concreto, o que não quer dizer que não se lhe reconheça, a posteriori, importância histórica no desenrolar dos acontecimentos subsequentes, nomeadamente (neste caso em concreto) no derrube da Monarquia em Portugal (como no derrube do czarismo, ou na «Gloriosa Revolução» de Cromwell, na Inglaterra de Seiscentos, etc.);
– Ninguém de bom senso e intelectualmente honesto pode sustentar que o simples facto de ter tido um regicídio na sua génese retira legitimidade histórica ao novo Regime republicano, ou muito menos confere qualquer espécie de legitimidade póstuma ao regime deposto a 5 de Outubro, isto numa óptica democrática, evidentemente;
– Também a Revolução Francesa, cuja importância histórica me dispenso de realçar, marcada por dois regicídios cruéis (as decapitações públicas de Luís XVI e, depois, de Maria Antonieta, ainda que sustentados num processo judicial, mas bastante discutível, mesmo para os parâmetros da época) e sendo inequivocamente o berço de todos os “jacobinismos” e “Terrores” da época contemporânea (Vermelhos, mas também Brancos), nem por isso deixa de constituir um passo gigantesco, pelas conquistas irreversíveis que impôs, no caminho que conduziu a Humanidade aos modernos conceitos (sempre inacabados) de Democracia, Liberdade e Direitos Humanos (ou alguém imagina que os rei e rainha assassinados, mais a respectiva e régia descendência, poderiam alguma vez ter-nos conduzido a tais avanços civilizacionais sem cometer os terríveis erros e os inevitáveis excessos da Revolução ou até, quem sabe, em menos tempo?…);
– De igual modo, o dia nacional dos franceses (14 de Julho) comemora a simbólica Tomada da Bastilha, na qual a multidão parisiense, esfaimada e enfurecida, linchou à pancada, entre muitos outros “inocentes”, o afável Marquês de Launay, Comandante da respectiva guarnição – será que por isso todos os franceses (Presidentes da República incluídos…) se podem considerar agentes do terrorismo internacional?
– E será que o proclamado Estado Novo, instaurado para pôr cobro aos supostos “desmandos” da República, será um bom exemplo de republicanismo, ou não terá antes sido uma forma mitigada de restaurar, no essencial ainda possível, o sistema económico e social vigente na obsoleta Monarquia portuguesa? Que republicanos confessos apoiaram Salazar? Que monárquicos o combateram convictamente, denodadamente? Por que razão nunca se consagrou oficialmente, durante quase cinco décadas de “Estado Novo”, a expressão vincadamente republicana de “Presidente da República”, sempre substituída eufemisticamente pela de… “Chefe de Estado”? O qual, aliás, nunca em quarenta e oito anos deixou de ser um cargo praticamente VITALÍCIO e ocupado por um Militar de alta patente, como manifesta sublimação duma indisfarçável vontade de manter a mais alta magistratura nacional sempre… na mesma “família”?
– E, por último, convém esclarecer do que se fala quando se trazem à baila as ditas monarquias actuais da Europa do Norte (ou mesmo de Espanha), que nada, rigorosamente nada têm em comum com a nossa deposta Monarquia (e muitas outras do Sul da Europa e não só, como a Áustria-Hungria imperial, a Turquia otomana, ou mesmo a Alemanha do “II Reich”), que constituíam verdadeiros sistemas sociais de castas, sem Cidadãos, mas apenas com súbditos, que possuíam direitos e deveres naturalmente desiguais! Pois as monarquias actuais da Europa do Norte (bem como a espanhola) têm efectivamente tanto das monarquias tradicionais como, por exemplo, tem hoje em dia de comunista a Rep. Popular da China! Argumentar por isso com uma suposta oposição política fundamental entre a República e essas ditas Monarquias constitucionais é escamotear o facto essencial de que a única (e quase diria irrelevante) diferença entre ambos os sistemas está num único e exclusivo aspecto, meramente super-estrutural: a chefia do Estado, nos Países “monárquicos”, é vitalícia e hereditária, o que porém pouco ou nada influi na condução das políticas desses Estados, dados os reduzidíssimos poderes constitucionais que, na prática, os soberanos detêm!
Tirando este aspecto ÚNICO, com reflexos a um nível meramente simbólico, a realidade é que as Monarquias europeias actuais estão claramente, inquestionavelmente muitíssimo mais próximas da nossa 1ª República do que da nossa deposta Monarquia!…
Alguém tem dúvidas disso?
Então, por favor, não continuem a olhar para a Suécia, para a Holanda, para a Dinamarca, ou mesmo para a Espanha, como um corvo olha para um espantalho – porque o que parece, efectivamente NÃO É!…

2 Comments:

Blogger al said...

Bom, comparar o derrube da Monarquia portuguesa com a queda do czar russo é, no mínimo hilariante! D. Carlos não era um rei absoluto, ao contrário do czar! O regime monárquico português era um regime constitucional. Decadente, é verdade, envolto numa crise profunda. Mas D. Carlos não foi um rei absoluto (como era o do czar russo). Por outro lado, a República que se lhe seguiu em nada melhorou a situação do país. Tirando algum esforço na área do ensino, os republicanos foram exactamente iguais - ou piores - aos monárquicos. A instabilidade política, a corrupção, a incapacidade económica e financeira, tudo isso são características ligadas aos republicanos. É que o Estado Novo, por muitas críticas que possam ser feitas (e muitas podem ser feitas) começou com uma forte adesão popular. E essa adesão resultou da incompetência republicana. Por isso, não percebo muito bem qual a grande marca histórica do 5 de Outubro, a não ser pela alteração formal do regime. Na prática, os republicanos mais não fizeram que, com as suas medidas catastróficas, abrir o caminho a Salazar!

9:33 da tarde  
Blogger Ant.º das Neves Castanho said...

Comparei o derrube da Monarquia portuguesa com o do czarismo apenas e só no aspecto, que têm em comum, de envolver a morte violenta do soberano deposto. Penso que isso é perfeitamente claro, mas se provoca o riso a al só posso é elogiar o seu sentido de humor.

Quanto a tudo o mais, releva de uma ingenuidade que me transcende argumentar que os republicanos foram os causadores do salazarismo. A 1ª República lutou sempre não só contra as insuficiências próprias de um País irremediavelmente atrasado para a sua época, como contra todos os que nunca se conformaram com a sua implantação e não se cansaram de lhe fazer a vida negra. Até que tomaram o poder pela força (supostamente com o "apoio popular", semelhante ao de Hitler - uma vez dado, não mais pode ser retirado...).


Aliás, se olharmos atentamente para a Europa da época perceberemos que não só as convulsões sociais e as crises económicas eram comuns a todos os Países mais desenvolvidos, a começar pela Alemanha, onde as revoluções, os "putschs" e a instabilidade campearam na década de vinte, como a manutenção da Monarquia em Itália, ao contrário de Portugal, em nada alterou o destino fascista deste País: não foi preciso a República ou os republicanos "abrirem caminho" a Mussolini, foi o próprio Rei que o nomeou Primeiro-Ministro e fez dele, legalmente, um Ditador.


Sobre a consistência do argumentário anti-republicano - que eu chamaria de anti-republicanismo primário - parece que nem vale a pena aprofundar mais.


Será mais útil perceber até que ponto a lenga-lenga anti-República da propaganda do nosso velho Estado Novo se entranhou na mentalidade de pessoas como al, que eu respeito (são vítimas dessa propaganda), mas que deveriam mostrar mais algumas qualidades interpretativas dos factos históricos hoje à vista de todos os interessados, do que o mero sentido de humor...

6:12 da tarde  

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