quinta-feira, outubro 18, 2007

PORTUGAL: QUE NOVOS TEMPOS?


A trágica queda em Entre-os-Rios da Ponte sobre o Douro, no Inverno de 2001, que provocou a imediata demissão do Ministro Jorge Coelho antecipando, qual oráculo, a do próprio Primeiro-Ministro Ant.º Guterres, menos de um ano depois, pode considerar-se simbolicamente o início do fim de um certo ciclo político em Portugal, correspondente às presidências “aristocráticas” de Mário Soares.

Ciclo faustoso e feliz, iniciado em 1986 (ano também da primeira eleição de Soares) com a nossa adesão à Comunidade Europeia, o qual ficará acima de tudo marcado pela abundância financeira e pela ilusão de desenvolvimento económico associadas aos fundos comunitários e à significativa melhoria do nível de vida médio dos portugueses; pela estabilidade governativa interna adveniente das sólidas duas maiorias absolutas consecutivas do P. S. D. com Cavaco Silva e, igualmente, no plano externo, pelas perspectivas de Paz e desanuviamento internacional decorrentes do desmoronamento do Bloco Comunista após a queda do Muro de Berlim.

Este ciclo político, claramente dominado pelo “cavaquismo” (ainda que mais ou menos discretamente tutelado pelo “soarismo”…), será por fim coroado por aquele epílogo breve, mas excepcionalmente feliz, constituído pelo “período guterrista”, em que as insuspeitadas benesses económicas da década anterior se alargam generosamente aos domínios do social, a par de uma rara e estrepitosa conjugação de motivos de orgulho e afirmação nacional, fundados na ilimitada confiança nas maravilhas do progresso tecnológico, que vão desde o exponencial crescimento da rede de auto-estradas e a inauguração da “maior Ponte da Europa” à realização da Expo’98, passando pela histórica adesão ao euro e, até, pelas façanhas continuadas do nosso desporto-rei – Campeões Mundiais de Juniores por duas vezes, finalistas dos Campeonatos Europeus de 1996 e 2000 e do Mundial de 2002 e, por último, a própria vitória (sobre a Espanha!) na organização do então futuro Euro’2004…

Durante este ciclo político de aparente “crescimento económico” e “progresso social” – e que na altura ainda não se tem a consciência de ser grandemente ilusório, face ao fulminante advento da mundialização mercantil, já que afinal foi só através dele que se resgatou definitivamente Portugal à estagnação e ao marasmo atávico herdados do regime anterior –, desenvolve-se no nosso País uma Sociedade radicalmente nova, crescentemente marcada pelo individualismo, pela ostentação (ou “novo-riquismo”) e pelo consumismo, bem como pela liberalização dos costumes (associada à liberalização dos meios de informação, em especial a televisão). Em clara e, por vezes, chocante oposição às tradicionais características de modéstia, moralismo, singeleza e colectivismo que imperavam ainda na Sociedade portuguesa, em resultado da influência conjugada da educação e da censura salazaristas, da Doutrina Católica e, por fim, do vendaval marxista dos tempos revolucionários.

Todavia, este ciclo terá constituído, porventura, o “canto do cisne” de um certo ambiente político de esperança e de optimismo, cujas raízes mais profundas se devem ainda procurar na Revolução de Abril. E que, tal como a Ponte de Entre-os-Rios, se desmoronaram dramaticamente com o emergir da crua realidade do “défice” orçamental, que afinal até era apenas a ponta de um autêntico e monstruoso “icebergue” formado pelo persistente (e irremediável?) atraso da Economia e da Sociedade portuguesas face aos seus velhos e, inclusivé, novíssimos parceiros europeus!

Passado que foi um período de curta e incaracterística transição entre este ciclo e o actual, período esse dominado, para além de uma infindável série de escândalos políticos e judiciais, pela instabilidade e inconsequência do Governo Barroso (de coligação e, logo de início, com um parto difícil e moroso) e também da Oposição socialista (sob a conturbada liderança de Ferro Rodrigues) e, por fim, pela absoluta perplexidade do Governo (?) Lopes, a primeira maioria absoluta do Partido Socialista e, finalmente, a eleição de Cavaco Silva para a Presidência da República marcam aquilo que poderíamos designar como o primeiro ciclo político do Séc. XXI português.

Analisando a situação política actual comparativamente à do ciclo político anterior (o longo “consulado” cavaquista, com o posterior corolário guterrista), que diferenças substanciais ressaltam?

As mais óbvias são duas: a estabilidade inerente à existência do primeiro Governo de Esquerda baseado numa maioria absoluta e a detenção da Presidência da República, pela primeira vez em Democracia, por um político de Direita.

Pela primeira vez desde a institucionalização da Democracia constitucional, o Presidente português não é um político de Esquerda, precisamente quando o Governo é, finalmente, sustentado por uma maioria absoluta mono-partidária de um Partido de Esquerda. Uma tal situação, triplamente original – por ambos os factos descritos mais pela sua conjugação –, ainda não me parece que tenha sido devidamente escalpelizada, em todas as suas importantes dimensões e potencialidades políticas, pela opinião pública em geral.

Por um lado, um Governo de Esquerda com maioria absoluta é uma situação totalmente inédita em Portugal! E se para muitos isso ainda não foi digerido (por vezes até pela rejeição de classificar o actual Governo como de Esquerda), para outros isso é um autêntico pesadelo que se recusam a aceitar.

Inversamente, o mesmo se poderá dizer do Presidente da República, que pela primeira vez na história da Democracia portuguesa não foi para Belém com os votos da Esquerda, o que constitui uma situação inédita e inimaginável ainda há bem poucos anos, sobretudo para grande parte da Esquerda anti-fascista.

A conjugação destas duas situações originais gera uma terceira originalidade, que é a “coabitação” de tipo novo relativamente ao que já se havia antes experimentado: Presidente de Centro-Direita, com Governo de Centro-Esquerda (estável e de maioria absoluta), com largos anos de sobreposição de mandatos (três pelo menos, em princípio). E já lá vão quase dois…

O que esperar então de uma tal situação política, tão radicalmente nova em Portugal?

Em primeiro lugar, tudo dependerá em larga medida do que for a actuação do Governo de José Sócrates. Se conseguir levar a cabo com um mínimo de sucesso a gigantesca tarefa de modernizar e reformar o Estado português (ou se, pelo menos, der passos firmes e consistentes nesse sentido), assim como inverter a onda de pessimismo económico e social herdada dos dois Governos anteriores (e ainda não convincentemente ultrapassada), não será difícil antever uma nova maioria absoluta nas próximas legislativas e a continuação, pelo menos por mais cinco anos, deste ciclo de estabilidade socialista-cavaquista encetado há já quase três.

Isto significa que, por um lado, será extremamente difícil às Oposições intervirem decisivamente no curso dos acontecimentos e, por outro, muito arriscado para o Presidente da República pretender interferir nos destinos da governação. Pelo menos até à consolidação da esperança de obtenção de um novo mandato (que hoje parece inevitável, mas que daqui por três anos poderá não o ser tanto…).

Neste cenário, restará ao P. S. D. (e ao C. D. S.) uma longa travessia do deserto (com inequívocas potencialidades para poder proceder a uma reformulação profunda e a um indispensável e salutar rejuvenescimento) ou, no limite, a sua própria extinção, dando eventualmente origem a um novo Partido de cariz conservador, aglutinando eventualmente alguns activos do actual P. P. e as eminências políticas do neo-cavaquismo.

Por outro lado, à Esquerda, será interessante ver até que ponto resiste o ressequido P. C. P., qual será a evolução do B. E., agora que se começa a aproximar, timidamente, dos centros de poder (com a coligação feita para a Câmara de Lisboa), e igualmente o futuro dos movimentos ditos “apartidários” e de “cidadania” que emergiram como novidades nas últimas eleições, em torno das personalidades carismáticas de Manuel Alegre e também, em Lisboa, de Helena Roseta.

No caso, muito menos provável (mas não impossível…), de o Governo socialista começar a evidenciar sinais de desorientação ou de desgaste prematuro, aí as previsões são claramente mais difíceis e focam-se, numa primeira análise, no que vier a ser a acção política do Presidente Cavaco Silva, que passará assim a deter, praticamente em exclusivo, as chaves da solução para uma eventual crise governativa em Portugal.

Nessa eventualidade, será interessante verificar até que ponto as Oposições estarão então preparadas para desempenhar um papel de relevo nessa busca de um novo equilíbrio, de uma nova estabilidade, ou se não será necessário concretizar-se a hipótese, recentemente aventada pelo avisado Manuel Villaverde Cabral, de ter de se recorrer à criação de uma nova força política a partir do Palácio de Belém (à semelhança do que foi, em tempos, o P. R. D. “eanista”).

Cenário extremo, em minha opinião, e o qual, levado às suas últimas consequências políticas, poderá inclusivamente desencadear uma reforma profunda do nosso ordenamento constitucional, direccionando-o para um pendor mais vincadamente presidencialista, de tal forma que se passe a poder falar com propriedade, como alguns já antevêem (um pouco precipitadamente…), numa Quarta República portuguesa...