terça-feira, fevereiro 12, 2008

A INDISPENSÁVEL RECUPERAÇÃO DO IDEAL DA ESQUERDA


Lema:
Se o Comunismo, hoje, pode apenas assemelhar-se a uma espécie de “Jardim Zoológico”, o Capitalismo (agora travestido de “neo-liberalismo”) continua a ser, fundamentalmente, uma reprodução muito fiel da própria… Selva!


Apesar de o Século XX ter já acabado há quase dez anos, ainda hoje sobrevivemos mentalmente nele, em termos de concepções políticas.

As grandes divisões ideológicas, nas quais se baseiam as principais distinções entre as diferentes “famílias” políticas, ainda se estabelecem entre os que permanecem fiéis ao Marxismo e aqueles que sempre o rejeitaram. Entre os que anseiam pelo advento da Igualdade e os que defendem a Iniciativa Privada, a Propriedade e o Mercado. Os primeiros proclamam-se “de Esquerda”, os segundos não se importam de ser arrumados na “Direita”.

Em consequência, a oposição entre Socialismo (ou mesmo Comunismo) e Capitalismo (ou Liberalismo, apesar da maior complexidade deste conceito) ainda supera a oposição entre Democracia e Autocracia.

Com o presente Artigo, pretendo apresentar os pressupostos ideológicos de uma nova perspectiva sobre os conceitos políticos habitualmente associados ao pensamento de “Esquerda”, adaptando-os às realidades do tempo em que vivemos e aplicando-os à situação concreta e específica de Portugal e da Sociedade portuguesa actual.

Como ponto de partida, parto de uma análise sumária sobre a actualidade política em Portugal neste ano crucial de 2 008.

Com efeito, assiste-se desde há dois anos a uma conjuntura muito curiosa na política portuguesa: o Governo é suportado na Assembleia da República, com maioria absoluta, por um Partido considerado de Centro-Esquerda mas, ao cabo de mais de dois anos em funções, adoptou quase em exclusivo políticas aclamadas pela Direita; o Presidente da República foi eleito maioritariamente pelo eleitorado de Centro-Direita, mas a sua acção concreta, em quase dois anos de mandato, agrada sobremaneira ao eleitorado da Esquerda; a Oposição de Esquerda ataca violentamente o Governo, desejando secretamente, porém, que ele nunca seja derrubado, pelo menos no curto prazo; a Oposição de Direita espuma literalmente de raiva, em privado, contra o actual Primeiro-Ministro, mas não só celebra importantes pactos com ele, como se limita a deixar aos sectores mais conservadores e retrógrados da chamada “sociedade civil” – Igreja Católica e poderes financeiros, económicos e corporativos – toda a iniciativa e praticamente toda a visibilidade do combate ao mesmo perante a opinião pública...

Com tudo isto, como é que o Povo, no meio desta inacreditável e indecifrável charada, há-de alguma vez conseguir entender a política portuguesa actual?

O resultado óbvio parece-me ser a tal “anomia” de que, recentemente, nos falava M. Villaverde Cabral… Que confunde as mentes, baralha as discussões, inibe a acção e perturba até a própria capacidade de identificação de referentes sociais. A questão essencial é, pois: aonde nos levará esta “anomia”?

Penso que, no mínimo, a esta conclusão inevitável: a velha matriz teórica de análise política que usamos, sobretudo desde o 25 de Abril de 74, está gasta, desadequada às realidades do presente e gera uma linguagem esquizofrénica que, decididamente, já de nada nos serve.

Em primeiro lugar, é óbvio que o próprio marxismo – fonte ideológica de grande percentagem da nossa actual grelha conceptual e até verbal de análise política – já não existe senão como uma fachada hirta, desvitalizada e sem verdadeiro conteúdo. O que não impede, porém, os Partidos ditos de Extrema-esquerda, herdeiros do seu espólio político, de a continuarem a utilizar, interna e externamente.

Por outro lado, a perpetuação desta reminiscência ideológica na Esquerda gera, nas forças políticas conservadoras, ou de génese não-marxista, um reflexo condicionado que as leva a continuarem a prosseguir numa linha de acção dominada pelo anti-marxismo primário e, por sua vez, completamente desfasado da realidade actual.

O resultado de toda esta desfocagem está à vista: incapazes de estabelecerem uma relação lógica e inteligível entre a linguagem da política e a Sociedade real em que vivem, muitos Cidadãos preferem afastar-se progressivamente quer da vida política, activa ou passiva, quer até dos actos eleitorais, da crença nos políticos em geral e, em última análise, da esperança nos próprios sistemas de governo democráticos, que acabam por culpar pelas dificuldades existenciais várias criadas pelas condições económicas e sociais em que vivem (e que afinal até são, em última instância, o mais nobre objecto da própria Política!).

Como ultrapassar, então, este aparente ciclo vicioso? Este paralisante bloqueio? É o que me proponho abordar no presente texto.

Para a esmagadora maioria da população, cujo nível de politização é muito inferior ao dos eruditos e académicos, a discussão política centra-se hoje entre estes dois grandes paradigmas teóricos: o Liberalismo e o Marxismo.

O primeiro associa-se genericamente à economia dita “de livre iniciativa”, ou ”de mercado”, a objectivos materialistas básicos (de eficácia económica) e à minimização do papel económico e social do Estado.

O segundo está geralmente associado a ideais de igualdade e “justiça social”, à intervenção reguladora do Estado na economia (se necessário em detrimento do seu próprio desempenho), bem como à solidariedade e à protecção social dos Cidadãos por parte desse mesmo Estado.

Ultrapassada que parece estar a fase dos totalitarismos, pelo menos nas sociedades ditas “avançadas”, ambas as ideologias aprenderam a conviver bem com a Democracia, que assim não constitui hoje factor de distinção relevante entre o Marxismo e o Liberalismo.

E, contudo, a Democracia continua a ser exibida por ambas as ideologias como pertença do respectivo património, sendo frequentes as acusações de “anti-democráticos” aos partidários da ideologia contrária…

Por este motivo, a forma democrática de Governo pode ser considerada como a base ideológica fundamental para qualquer programa político de “Esquerda” que se pretenda minimamente credível e consistente.

Sendo a Democracia, talvez, o conceito ideológico mais sólido da actual modernidade, o seu aperfeiçoamento e aprofundamento devem assim ser elevados à categoria de objectivos de primeiro nível de um novo conceito de “Esquerda”.

Isto significa, à partida, que aquilo a que passarei a designar como a “Nova Esquerda”, e cuja fundamentação teórica pretendo esboçar no presente Artigo, se deverá passar a caracterizar, fundamentalmente, não como a área do pensamento político que combate pela Igualdade, pela Fraternidade, pela Solidariedade, pela Justiça Social, ou por qualquer outra forma daquilo a que se chama agora a “equidade”, mas antes como o campo ideológico que valoriza e defende, antes do mais e acima de tudo, a adopção do sistema democrático como forma de organização política da Sociedade.

A partir da Democracia, novo pilar ideológico matricial (e de que adiante se procurará fixar as características essenciais), será necessário definir os objectivos e conceitos de nível secundário para a ideologia da Nova Esquerda, os quais deverão, quanto a mim, estar relacionados com os Direitos Humanos fundamentais e com a prossecução do ideal de Justiça.

Tudo isto somado, conduz-nos naturalmente a um objectivo global para a Nova Esquerda que se pode traduzir na defesa intransigente do Estado de Direito Democrático, o que em princípio deverá ser consensual numa ampla faixa do espectro político.

A partir daqui, será então necessário entrar em particularidades ideológicas mais distintivas, que em princípio deverão estar associadas a critérios de natureza económica e social.

A este nível, os dois conceitos fulcrais são a Liberdade de Iniciativa e o papel social do Estado. Numa óptica de Esquerda, no ambiente “natural” formado pelo Mercado e pelas suas regras de livre e isenta concorrência, deverá instalar-se o Estado enquanto garante do cumprimento das normas e na defesa do interesse geral, público, sobre os interesses particulares, individuais ou de grupo.

O Estado deve assim, em primeiro lugar, providenciar pelo cumprimento das Leis, a começar pela Constituição, assegurando que as relações entre os particulares se pautem por regras claras de convivência.

Para além disso, caberá ao Estado definir quais os níveis mínimo e máximo de bem-estar que devem ser permitidos aos Cidadãos do País, evitando deste modo a existência de excluídos, causa de problemas e conflitos sociais, mas também de super-poderosos, pondo assim em risco a superioridade do interesse público face ao particular. A isto se pode chamar exercício de funções de coesão social e de coerência organizacional. Ou seja, se houver um Banco, por exemplo, cujo poder económico seja superior a uma determinada percentagem da riqueza nacional, o Estado deverá cobrar os impostos que forem necessários para limitar o crescimento dessa riqueza particular ao tecto máximo pré-definido.

Conclui-se daqui que, no futuro, residirá no papel reservado ao Estado na Sociedade o verdadeiro carácter distintivo entre as novas Esquerda e a Direita.

Outra questão importante consiste na forma republicana de governo, que está implícita no princípio da igualdade entre todos os Cidadãos.

Resumindo, a Nova Esquerda deverá passar a ser politicamente mais Democrática e menos Igualitária, economicamente mais Social e menos Estatal, ideologicamente mais Liberal e menos Dogmática.

Por outras palavras, deverá ultrapassar todos os complexos derivados da sua herança marxista, que deverá assumir sem constrangimentos, ultrapassar sem enjeitar.

Como aplicar então esta formulação teórica ao caso português?

A Nova Esquerda em Portugal terá sempre como referentes simbólicos naturais a implantação da Primeira República, em 5 de Outubro de 1910, e sobretudo o 25 de Abril de 74, tal como idealizado inicialmente no Programa do M. F. A. e, consequentemente, expurgado das suas derivas totalitárias posteriores.

De igual modo, deverá assumir sem tibiezas o carácter laico e a-confessional da organização política da Sociedade, lutando sem tréguas pela total erradicação das marcas profundas do ancestral clericalismo que ainda permanecem tanto na forma, como na essência da arquitectura organizacional do Estado português e das respectivas instituições, no respeito por todas as crenças religiosas e na sua consideração em rigoroso plano de igualdade e de equitatividade.

Balizada deste modo na República, na Democracia Constitucional e no carácter rigorosamente laico do Estado, a Esquerda em Portugal deverá ainda aceitar os mecanismos económicos do Capitalismo, ou Liberalismo, nomeadamente a Propriedade Privada e o funcionamento do Mercado, mas igualmente defender uma concepção de Estado Social, forte, regulador e garante do cumprimento equitativo e igualitário das Leis, tendo como objectivos fundamentais a Paz, a Justiça, a Liberdade, a Iniciativa Privada e a Ordem, enquanto factores imprescindíveis ao Progresso Social e ao Desenvolvimento Económico e Territorial.

Não propriamente central num pensamento de Esquerda, deverá ainda relevar-se uma preocupação genérica com a Defesa da Integridade Populacional e Territorial e da Língua e Cultura portuguesas, bem como com a manutenção da Independência Nacional, se bem que numa perspectiva de crescente mundialização e busca de expansão, cada vez maior, da aplicação das normas do Direito Internacional.

Quanto à forma democrática de Governo, tomando-se como estabilizada, irreversível e “acabada” a sua vertente republicana, deverá a Nova Esquerda pugnar pelo seu progressivo aperfeiçoamento, acompanhando a evolução das mentalidades e do conhecimento político, sempre almejando formas mais depuradas e avançadas de manifestação e de representação efectiva da vontade soberana do Povo.

A este nível, muito haverá ainda a fazer, devendo actuar-se de forma equilibrada, pedagógica e gradual, ponderando sempre a melhor oportunidade para avançar com reformas ou, até, com rupturas, se consideradas necessárias.

Os aspectos que carecem mais urgentemente de atenção prendem-se com, por exemplo, as leis eleitorais, o sistema de governo, a descentralização política e administrativa e o incremento da participação e responsabilização popular na aprovação dos orçamentos públicos.

Nos Artigos que se seguem procurarei desenvolver, separadamente, cada um destes assuntos.

Ant.º das Neves Castanho (Lisboa).

1 Comments:

Blogger A.Mello-Alter said...

Muito bom.
Diz ao Sr. Antº das Neves Castanho, que o Crónicas do Planalto está aberto aos seus textos.
(de pref.mais curtos)

9:41 da tarde  

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