terça-feira, março 06, 2007

O NOVO PORTUGAL!




Nas sociedades humanas, como nas ondas do mar, por baixo da aparente superfície da realidade (que os meios de comunicação não se cansam de nos revelar) há “correntes de profundidade” muito fortes e que são, no fundo, aquilo que realmente condiciona o movimento ondulante das superfícies, mas que, por geralmente negligenciadas, são muito menos conhecidas e só se tornam apercebidas, de tempos a tempos, pelos efeitos visíveis que provocam, quase sempre inesperados, tantas vezes surpreendentes.

Tem isto a ver com os resultados do último referendo nacional, que a meu ver são objectivamente muito mais fruto da forma como tem evoluído, em profundidade, a sociedade portuguesa nos últimos anos, do que propriamente da actual conjuntura política, ou mesmo da própria campanha política que antecedeu esta votação.

Talvez por isso, mais ainda do que surpreendidos pelos resultados, os defensores do “não” (e suspeito que até os do “sim”) terão ficado perplexos com a evidente ineficácia e o comprovado desajustamento da campanha que efectuaram, tanto ao nível das mensagens e linhas de força ideológicas veiculadas, como da linguagem e do “tom” da sua propaganda e, mais ainda, até dos principais “rostos” que deram visibilidade pública ao “não”.

Tudo isto num País onde, ainda há menos de dez anos, a mesmíssima pergunta suscitou não só muito menos participação na votação – sinal claro de acomodação com a situação legal vigente –, como teve resultados quase simétricos!

Estará assim na altura de perguntar: porque terá falhado agora o que, ainda há menos de dez anos, provou ser tão eficaz nos dois referendos então realizados em Portugal (que foram ambos vencidos pela mesma área político-social)? Ou antes:

– O QUE FEZ MUDAR TANTO A SOCIEDADE PORTUGUESA NOS ÚLTIMOS DEZ ANOS?

Seja lá o que for, os estrategos da política e do “marketing” social parece não o estarem a compreender adequadamente. E a sensação que fica é a de que um certo tipo de mensagens, perfeitamente válidas para outrora, têm cada vez menos destinatários na actual Sociedade portuguesa...

Sendo esta, tecnicamente, matéria nuclear da competência da Sociologia, seria de esperar uma resposta cabal, ou no mínimo pistas de esclarecimento úteis, por parte desta disciplina. Parece-me, contudo, que os caminhos que a mesma vem de há muito trilhando, pelo menos no nosso País, lhe conferem um carácter muito mais de ciência descritiva (“Sociografia”?) do que propriamente explicativa, daí que não seja nada fácil, pelo menos ao cidadão comum, socorrer-se desta área do saber para começar a penetrar nos mistérios das profundezas do Portugal contemporâneo, enquanto sistema social.

Assim, caso pretendamos ver mais além do que as estafadas “análises políticas” dos costumeiros “papagaios de serviço” nos nossos meios de comunicação social ditos de “massas“, resta-nos socorrermo-nos nesta tarefa da velha bússola (falível, admito-o) do empirismo.

Sendo contudo indispensável assegurar níveis mínimos de eficiência semântica num suporte tão delicado, neste aspecto, como é a “net”, limitar-me-ei a sintetizar aquilo que me parece serem as tendências predominantes detectáveis na evolução da Sociedade portuguesa nos últimos, digamos, vinte anos – tempo aproximado que decorreu desde a nossa já distante adesão à “Europa” (reconhecidamente o marco histórico, político e social mais importante para a Sociedade portuguesa, no seu conjunto, desde o 25 de Abril).

Portugal urbanizou-se e tornou-se uma Sociedade mais cosmopolita:

A percentagem de pessoas que vivem em aglomerados urbanos de média ou grande dimensão não parou de crescer, ou seja, a população rural entrou em irreversível declínio numérico, percentual e até etário (é cada vez mais idosa). Isto tem, logo à partida, implicações directas ao nível da “abertura” e da “evolução” das mentalidades, decorrentes sobretudo da complexificação e da intelectualização a que a experiência urbana submete a vida das pessoas, nomeadamente afastando-as das realidades sociais primárias, ligadas à produção dos bens de sobrevivência, à proximidade com a Natureza e à predominância dos relacionamentos pessoais de tipo familiar e vicinal.

Os portugueses estão mais escolarizados:

Aumentaram drasticamente os níveis gerais de alfabetização, de escolaridade mínima e, cumulativamente, de formação universitária (e até pós-universitária), com muito particular expressão no caso da população feminina. Apesar de alguns “contra-fenómenos” a ter em conta, como os preocupantes níveis de iliteracia (a que me permito acrescentar os de “inumeracia”, mais desconhecidos mas não menos alarmantes), esta evolução, que já vem desde a Revolução de Abril mas que se acentuou nas últimas décadas, foi igualmente determinante para a mutação do tecido social no período em análise, tendo tendência para se estabilizar nos anos mais próximos.

As portuguesas estão mais activas:

Isto é uma realidade inquestionável face ao que era a nossa Sociedade, sobretudo antes do 25 de Abril, e tem expressão a dois níveis diferentes, mas de efeito concorrente: não só existem muito mais mulheres trabalhadoras (menor percentagem de “domésticas”), como sobretudo existem muitíssimo mais mulheres em profissões antes quase exclusivas dos homens e, mais ainda, em cargos de elevada responsabilidade, quer ao nível das empresas privadas, quer principalmente na Administração e nas empresas públicas.

Os portugueses estão mais prósperos:

Se bem que na última década se constate uma forte tendência de estagnação, a verdade é que o nível de vida dos portugueses foi alvo de significativas melhorias desde o 25 de Abril, sentidas com particular expressão na primeira década da nossa integração europeia e com reflexos bastante visíveis ao nível dos hábitos de consumo e dos padrões de vida dos portugueses em geral.

Os portugueses viajam mais:

Consequência imediata, entre outros, dos parâmetros anteriores, mas com uma influência muito especial sobre as mentalidades, dada a importância que a percepção directa de outras realidades pode ter na capacidade de problematização e avaliação das realidades nacionais. E este aumento do conhecimento concreto sobre outros Povos e outros Países resulta não apenas das duas motivações “tradicionais” do viajar – em férias, ou pela emigração (que continua a existir, se bem que com outras características) – mas agora também, cada vez mais, por motivo de trabalho (ou negócios) e estudo, sendo cada vez maior o número de portugueses que viaja por estes motivos.

Os portugueses estão mais bem informados:

Fruto sobretudo das mudanças operadas nos meios de comunicação social, em especial após a “liberalização” da rádio e da televisão, há cerca de quinze anos, mas substancial e qualitativamente reforçadas com a propagação e generalização do acesso à “internet”, cujos efeitos se começam agora a fazer sentir com crescente acuidade. Este aumento e diversificação das fontes de informação tem como uma das consequências principais a perda de influência dos poderes mediáticos “tradicionais”, como eram os jornais, as estações de rádio e televisão “oficiais” (ou “oficiosas”) e, convém não esquecê-lo, as hierarquias religiosas (onde avulta a importância, sem par em Portugal, da Igreja Católica).

Os portugueses estão mais “terciarizados”:

É inegável que a redução drástica dos activos do sector primário e uma relativa estagnação da percentagem de activos no sector industrial provocou um crescimento exponencial dos empregados no sector dos serviços e do comércio, cujo “estilo de vida” induz naturalmente alterações consideráveis naquilo que se poderia designar como a “personalidade social” de comunidades em que predominam os “empregados de escritórios”, os “agentes comerciais”, as profissões “técnicas”, os “profissionais liberais”, os “empresários”, etc., face ao que era a vivência social associada à produção agrícola, pecuária, florestal, piscatória, ou mesmo a das comunidades mineiras. Esta mutação tem talvez como consequência mais determinante uma enorme diferenciação individual e uma pulverização da identidade social em sub-culturas e suas derivadas, por comparação com os tempos em que a Sociedade estava muito mais uniformizada e homogénea, porque fortemente estruturada com base em características identitárias comuns como eram, por exemplo, a “terra” de origem, a profissão (ou “corporação”) e a classe social, que possuíam culturas e interesses semelhantes e, consequentemente, comportamentos sociais mais ou menos padronizados.

Os portugueses estão menos religiosos:

Evidência da maior relevância para a análise das mutações sociais que se vêm verificando em Portugal, dadas as profundas implicações de teor comportamental e mental que estão associadas a esta realidade, tida por irreversível e comum em toda a Europa e que me dispenso de desenvolver aqui (só a análise deste parâmetro seguramente daria para vários doutoramentos em Sociologia…).

Os portugueses estão mais “civilizados”:

A adopção da forma democrática de governo e a nossa posterior integração no espaço legal (e “mental”) europeu conduziram a Sociedade portuguesa a práticas e a hábitos que lhe eram até então estranhos, como a participação cívica e eleitoral, a liberdade de expressar e discutir os assuntos públicos, a consagração do direito de livre associação e a consequente proliferação da realização de assembleias gerais (com as suas regras muito próprias), a começar nas escolas e universidades, mas depois nos clubes, nas associações culturais e profissionais, nas empresas de tipo “S. A.” e, até, nos cada vez mais generalizados condomínios onde moramos, tiveram como consequência uma mudança drástica e profunda no modo paradigmático de encarar a conflitualidade social, que transformou de cima a baixo, se bem que imperceptivelmente, toda a Sociedade portuguesa.

Os portugueses estão mais em contacto com estrangeiros no seu próprio território:

Consequência de Portugal se ter transformado, de há quinze anos a esta parte, num País também de Imigração (e após o impacte semelhante que tivera, nos anos setenta, o fenómeno dos “retornados” de África), o contacto banal com trabalhadores e estudantes estrangeiros – mais ainda do que o muito localizado (e já adquirido) contacto frequente com turistas (aliás, quase exclusivamente oeste-europeus) – estendeu-se a todo o território nacional e, sobretudo, a todas as classes sociais e níveis etários, contribuindo (a par do referido aumento do número de viagens ao estrangeiro) para um cada vez maior conhecimento de realidades e culturas até então quase totalmente ignoradas da generalidade dos portugueses, como por exemplo a indiana, a chinesa, a ucraniana, a romena e, até, a brasileira, na sua vastidão e diversidade...

Os portugueses estão mais “motorizados”:

Poderá à primeira vista parecer menos importante nesta análise, mas a inversão, operada em Portugal nestas últimas duas ou três décadas, da relação percentual entre os utentes habituais dos transportes públicos e os do transporte individual – com o aumento extraordinário das taxas de motorização (posse de viatura própria) e dos índices de utilização do carro particular –, teve igualmente como efeito uma sensível mudança de mentalidade dos portugueses, que tende cada vez mais a incorporar elementos de individualismo, exibicionismo, hedonismo, etc., do que em épocas anteriores a estes fenómenos, onde ainda eram detectáveis marcas indeléveis de um espírito de colectivismo, ou cooperativismo, e de outras manifestações de uma certa cultura “popular”, ou de matriz marxista, então predominantes, muito na sequência da “revolução social e sexual” dos anos sessenta (como se sabe, tardiamente importada em Portugal), as quais hoje, aparentemente, já só encontram “refúgio” em certas formas de voluntariado social.

Os portugueses estão bastante mais cépticos:

Com o desmoronar das “certezas” ideológicas, tanto políticas como religiosas, o cidadão comum procura referências novas que o ajudem a encontrar soluções para os problemas e desafios do presente, tanto a nível colectivo como sobretudo familiar e pessoal, mas com um sentimento crescente de incredulidade, desencanto e criticismo, que por vezes se pode revelar algo impeditivo de exercícios mais lúcidos de análise e de atitudes de reacção mais prontas e, sobretudo, mais convictas. Há de facto, em Portugal, uma grande crise mental (eu diria mesmo MORAL), alimentada por toda a espécie de “doenças” e outras patologias sociais recentes que vêm atormentando as consciências dos portugueses e aglutinando nuvens de preocupação sobre o seu futuro, desde a corrupção em vários níveis (políticos, em especial os autarcas, futebol, forças policiais, de fiscalização e outros serviços públicos…), passando pelas constantemente aludidas crises na Educação, na Saúde, na Justiça e na Segurança Social, até ao exemplo mais emblemático de toda esta sintomatologia que é, indubitavelmente, o caso de pedofilia vulgarmente designado pelo nome da mais famosa instituição portuguesa de acolhimento para menores desvalidos, o qual mistura chocantemente figuras do mundo da política, do dinheiro e do poder (sobretudo mediático).
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Caldear sabiamente tudo isto e ganhar perspectiva de análise para poder extrair conclusões válidas parece ser a única forma de começar a compreender melhor o que somos e no que nos estamos a tornar, nestes alvores do Séc. XXI, de modo a podermos talvez encarar o futuro com mais optimismo e seriedade, ultrapassando de vez os mitos "patrioteiros" e pretensamente históricos com que em tempos nos pretenderam tudo explicar, mas também esta nova e incómoda sensação de nos estarmos sempre todos a enganar uns aos outros, para melhor escaparmos ao nosso triste “fado”, naquela angústia indefinível e tão bem alcunhada por um dos nossos maiores pensadores da actualidade como “O MEDO DE EXISTIR”…