quarta-feira, março 21, 2007

SALAZAR E O SALAZARISMO.


Parece que Oliveira Salazar volta a estar na moda, com redobrado ímpeto (e notório descaramento), à medida que a personagem e os seus feitos se vão começando a desvanecer na memória dos vivos e a entrar, progressivamente, na bruma dos tempos históricos.

Isto sucede muito por força de um novo programa televisivo, destinado ao “grande público” e pomposamente chamado “Os Grandes Portugueses”, que entre outras consequências já deu origem à curiosa intenção, manifestada pela C. M. de Santa Comba Dão, de criar um Museu local para homenagear o seu conterrâneo e nosso grande ditador do Séc. XX.

Eis portanto Salazar de novo em força na comunicação social – sinal claro de um tempo avaro em notícias importantes (e, por um lado, ainda bem, que quando não há notícias para dar há sempre boas notícias…). Mas, em todo o caso, é sempre uma oportunidade para revisitar a nossa memória colectiva sobre um tempo e um fenómeno – o salazarismo – ainda não suficientemente discutidos e digeridos entre nós, de uma forma objectiva e desapaixonada, pelo menos pelas novas gerações de portugueses.

Resistindo a cair na armadilha publicitária da tola pergunta “– Salvador ou ditador? Decida você!”, não penso sequer que Salazar tenha sido um “grande português”. Não posso conceber que seja comparável a Camões, ou Fernando Pessoa, por exemplo.

Mas foi, sem sombra de dúvida, o estadista português mais marcante da primeira metade do século passado e teve, inegavelmente, uma influência decisiva na formatação do Portugal moderno, a qual ainda hoje se faz muito fortemente sentir, mais do que geralmente se pensa. Só por isso já valeria a pena voltar a discuti-lo.

Falar de António Salazar é sinónimo de falar do salazarismo. E pode e deve falar-se deste fenómeno, sem complexos. Desde que se façam as indispensáveis distinções.

Sim, porque uma coisa é Salazar enquanto pessoa, ideólogo e estadista, outra bem diferente é o salazarismo, enquanto regime político e económico-social. Salazar será o grande responsável por ele, mas o salazarismo, infelizmente, não se esgota em Salazar, muito pelo contrário.

Assim como o papel histórico de Salazar não se pode simplisticamente resumir à criação (e manutenção ad nauseam) do Estado Novo, ditatorial, repressivo e, a comprovar-se ainda um dia, criminoso.

Mas claro que também não pode beatificamente ser reduzido às louváveis e exemplares conquistas dos seus áureos “primeiros tempos”, das quais avultam uma mais "técnica", o completo saneamento do Estado português (e, note-se, não somente das suas contas...), e outra mais “política”, a hábil diplomacia com que furtou Portugal aos horrores da II Guerra Mundial.

Concordo por isso, absolutamente, com a preservação da memória histórica do Estado Novo, mas de uma forma pedagógica e, consequentemente, útil para o presente (e, sobretudo, para o futuro), não como santuário de nostalgias e endeusamentos perversos, ou condenações simplistas, qualquer destas atitudes com óbvios efeitos nocivos para a formação do inconsciente colectivo do Povo português...

Salazar foi de facto, numa dada altura, o “salvador” de uma certa ideia de Pátria, tal e qual o foram Franco, Hitler e Estaline, mas também Churchill e De Gaulle, cada um à sua maneira. Salazar conseguiu, num primeiro tempo, unir os interesses imediatos da generalidade do Povo português – paz, estabilidade, justiça e alguma prosperidade – aos das classes poderosas, ainda que sacrificando a isso os ideais mais progressistas da Humanidade – Democracia, Liberdade, Igualdade e Direitos Humanos –, e com isso alcandorar Portugal, por uma década, à enganadora e insustentável vanguarda da evolução na Europa, granjeando por isso o respeito e a admiração da generalidade dos seus contemporâneos.

Mas foi, ao contrário de Franco, incapaz de se adaptar aos novos ventos da História após 1945 e o resultado foi que, a partir do início dos anos 50, passou simplesmente a obstinar-se, cada vez mais na defensiva, em prolongar contra ventos e marés a sua concepção de um “Portugal dos Pequenitos”, ignorante, contentinho, recatado e, assim, imune à “perversidade” da evolução mundial, arrastando com isso um Povo inteiro para a cauda da Europa, onde aliás já se encontrava nos tempos da… Monarquia! Refugiando-se gradualmente apenas no seu círculo restrito de seguidores e nas cada vez mais reduzidas classes privilegiadas, acabou por perder de todo o contacto com a Sociedade portuguesa e, consequentemente, a oportunidade de ter um papel ainda relevante no tempo que lhe sucederia, ao contrário de Franco, que não só deixou o seu País bem apetrechado para o pós-franquismo, como decidiu ainda em vida a sua própria sucessão.

Salazar, pelo contrário, com este abrupto e irreversível retrocesso político a partir dos anos cinquenta – intensificado no início da década seguinte com a perda dos territórios indianos e a eclosão das guerras coloniais em África –, foi gradualmente perdendo a energia, a credibilidade, a aura e, por fim, o próprio domínio do País, que a partir, sobretudo, da crise do assalto ao “Santa Maria” e do fenómeno Humberto Delgado já só controlava à base de muita censura e repressão.

Agora, à medida que se vai ganhando verdadeira perspectiva histórica sobre toda uma época que está prestes a desaparecer, à espera do próximo sobressalto, é importante começar finalmente a centrar o debate sobre Salazar e o salazarismo numa óptica fria, objectiva e racional, passada que está a fase das análises e avaliações ainda “a quente”.

Tenho para mim, que ainda vivi uns breves anos no seu tempo, a sensação de que Salazar, apreciações dogmáticas à parte, foi sem dúvida o político e estadista português mais importante da primeira metade do Séc. XX.

Acabou com a grave instabilidade política e social, salvou as finanças públicas da insolvência, melhorou as condições económicas da população, fortaleceu as instituições públicas e o papel do Estado, evitou que sofrêssemos o pesadelo da guerra. No final, merecia de facto um mausoléu em Lisboa e uma estátua (no mínimo um busto…) em cada Capital provincial (pelo menos nas Províncias do Continente), tal como Lenine, Estaline ou Atatürk (este ainda os tem, Mausoléu e estátuas, respectivamente em Ancara e por toda a Turquia!)…

Em vez disso fez-se pagar doutra “espécie”: a manutenção inquestionada e vitalícia no poder ABSOLUTO! E uma tal paga, com o passar das décadas, foi-se revelando excessiva, demasiado excessiva para os bons serviços outrora prestados!

Em consequência, a sua importância como estadista e político, é forçoso reconhecê-lo, esbate-se drasticamente na segunda metade do Século XX português, onde a sua influência histórica já pode perfeitamente ser comparável à de personalidades como Mário Soares, Marcelo Caetano e, até, Álvaro Cunhal, se não mesmo à de Humberto Delgado, Ramalho Eanes, Melo Antunes e outros “capitães” de Abril (como Salgueiro Maia e Vasco Lourenço), Spínola, Almeida Santos e Cavaco Silva (já que nomes como Sá Carneiro, Otelo, Pinto Balsemão, Costa Gomes, Adriano Moreira, ou mesmo Vasco Gonçalves, apesar de bastante importantes, não se podem colocar num mesmo plano).

Em bom rigor histórico, e a comparação pode até ser desagradável, mas o facto é que, por exemplo, Hitler em doze anos mudou radicalmente o Mundo, pelas piores razões, é certo, enquanto que Salazar, quando desceu da cadeira, após quarenta anos dum poder absoluto em tudo semelhante, apenas conseguiu… deixar o “seu” Portugal exactamente no mesmíssimo ponto em que o havia encontrado: pobre, inculto, atrasado e totalmente entregue às garras do fundamentalismo católico.

E, embora aparentemente em paz, pelo menos no Continente e “Ilhas Adjacentes”, potencialmente à beira de um cataclismo social e político terrível, que só a sagacidade e a coragem dos que lhe sucederam foram capazes de evitar!

Estude-se, pois, a História como ela merece. Para não dar lugar a que floresçam desenfreadamente os mitos…

Já quanto ao tal Museu de Samba Comba, duvido que algum dia venha a existir e, mesmo que a C. M. santa-combense o consiga criar, tenho a certeza de que não fará sequer justiça àquele que pretende homenagear, dadas as reconhecidas limitações do Poder Local em tudo o que toca à cultura, para mais fora dos principais centros nacionais de irradiação da mesma.

Mas um Museu Nacional de História Contemporânea, eventualmente com pólos temáticos em Lisboa, no Porto, em Coimbra, como noutros pontos do País, que nos mostrasse objectivamente o Portugal do pós-liberalismo e pós-independência do Brasil, desde que alicerçado em saber científico, rigor intelectual e elevados padrões estéticos, talvez fosse um óptimo meio de conservar e expandir a nossa memória sobre uma época determinante para o nosso presente, contribuindo valiosamente para um maior conhecimento e valorização daquilo que somos e do que valemos enquanto Nação e Cultura, que tanta falta nos faz e cada vez mais fará nesta Europa e neste Mundo crescentemente uniformizados e com as culturas e nações declinantes e mais débeis em galopante crise de identidade...