sexta-feira, março 09, 2007

MANUAL ÚNICO DE HISTÓRIA EUROPEIA?


O conhecido programa matinal “Forum”, da «TSF», debateu ontem a ideia do Governo alemão (supostamente apoiada já pelos da França e da Espanha) de criar um Manual escolar único para a História Europeia, pelo menos no período do pós-guerra, a adoptar por todos os países da União.

Como seria de esperar, a grande maioria das opiniões expendidas no citado programa foi contrária a esta ideia, apesar de algumas vozes se terem manifestado, em princípio, a favor da mesma ou, no mínimo, a terem considerado aceitável e compreensível.

Eu, pelo contrário, não consigo alinhar por este diapasão geral (pelo menos de quem se manifestou no referido programa) de rejeição e de crítica liminar a esta proposta, por diversos motivos que tentarei explicar.

Há dois prismas fundamentais que devem ser tidos em conta nesta questão: o pedagógico e o ideológico.

Quanto ao primeiro, concordo que a imposição de um Manual escolar único no ensino básico e secundário seja uma discussão importante, mas diferente, porque extravasa a disciplina de História (pode, aliás, aplicar-se a todas) e, consequentemente, esta questão concreta. Não vale a pena por isso discuti-la agora aqui. Passemos então de imediato ao cerne da questão: o aspecto IDEOLÓGICO.

Numa primeira abordagem ao assunto, não considero esta ideia da Chanceler alemã mesmo nada descabida, antes pelo contrário, acho até perfeitamente natural que todos os Governos da União Europeia decidam fomentar a criação de um Manual unificado sobre a nossa História comum – e, diga-se de passagem, não só a mais recente –, que possa ter qualidade científica e didática para ser proposto às autoridades educativas de cada Estado-membro como uma das alternativas de adopção por parte das respectivas Escolas.

Já me parece um pouco difícil, se não mesmo impossível, exigir que esse Manual seja de facto obrigatório e único em toda a União, pois o monolitismo e a imposição de uma cultura “oficial” não são reconhecidamente os valores sobre os quais deve assentar a construção europeia.

Mas outra coisa muito diferente é a forma instintiva, subjectiva e primária como vi gente ilustre e conceituada, como por exemplo o emérito Prof. Viriato Soromenho Marques, entre tantos outros (nomeadamente professores de História), reagir a esta ideia, como se de um autêntico crime de lesa-pátria(s) se tratasse! Parece-me detectável aí um certo excesso de patriotismo, se não mesmo um nacionalismo pacóvio, se bem que envergonhado e não assumido, e um lamentável pendor passadista (e até provinciano), face a uma ideia que me parece louvável e inovadora, se bem que, não tenhamos dúvidas, seja de concretização seguramente árdua e morosa.

Parto obviamente do princípio – e nem me passa, aliás, pela cabeça que possa ser de outro modo – que este Manual de História será não apenas elaborado por historiadores de grande craveira e prestígio (note-se, nem sequer necessariamente europeus!), como o mais possível isento e imparcial, como aliás toda a narrativa histórica que se preze deve ser.

E recordo, a propósito, que da Bibliografia aconselhada, nos meus já distantes tempos do Curso Geral dos Liceus, sobre História Universal não constava NENHUM AUTOR PORTUGUÊS! Será que esses livros, por serem de autores estrangeiros, não teriam imparcialidade, qualidade científica e pedagógica, rigor histórico? E, por outro lado, terá recentemente sido concluída alguma “História da Europa”, de origem portuguesa, que nos faça “justiça” e evite assim que possamos ser remetidos, como alguém dizia ontem, para “duas ou três páginas” face às “quarenta” sobre a Espanha e às “mais de cem” sobre a França e a Alemanha?

E já agora também pergunto: será que os ilustres historiadores e professores portugueses de História (ou da História portuguesa) estão satisfeitos com a forma como a mesma era, ainda há poucas décadas (e continua a ser?), ensinada nas nossas Escolas? Se assim é, isso só pode significar que estão contentes com a forma como a verdadeira História do território que hoje é Portugal NÃO é ensinada aos alunos do ensino básico, secundário e, quem sabe, também nas próprias Universidades!

Se for esse o caso, então sempre lhes digo que, do meu modesto ponto de vista, NÃO TÊM QUALQUER MORAL para rejeitarem uma História da Europa feita seja lá por quem for, desde que com base em rigor científico, isenção e imparcialidade!

Quem vive satisfeito a ensinar (ou a aprender, ou até a discutir) uma História que só nos dá a visão dos vencedores e que omite toda a realidade (e todas as fontes, nomeadamente as orais!…) para além dessa visão e que, por isso mesmo, não é sequer digna de ser considerada História, não tem autoridade para se ofender com uma pretensa “usurpação” da nossa História por parte das instituições europeias!

Quando a nossa juventude continua a ser literalmente intoxicada com as mentiras oficiais sobre a “Reconquista aos Mouros”, sobre a “Gesta das Descobertas”, sobre o “domínio filipino”, sobre a “Aliança Luso-britânica” (a aliança militar “mais velha do Mundo”…), ou mais genericamente sobre esta “velha Nação com oito séculos de História”, está de facto, acima de tudo, a contribuir para a propagação de uma ideologia específica, uma ideologia que por acaso até é profundamente nacionalista, racista e xenófoba, portanto CONTRÁRIA AOS ACTUAIS VALORES DA DEMOCRACIA, DA LIBERDADE E DOS DIREITOS HUMANOS sobre os quais se funda a construção da EUROPA DO FUTURO!

E é aqui que as coisas adquirem os seus verdadeiros contornos: será admissível continuar a propagandear dentro das fronteiras da U. E. este tipo de ideologias, utilizando alegremente para tal dinheiros públicos europeus, sendo estas objectivamente CONTRÁRIAS ao espírito europeu? Os alemães, que pagam bastante do que nós hoje “somos”, acham que não. E muito bem, acrescento eu. Pelos vistos os franceses pensam o mesmo, e até os nossos vizinhos e irmãos espanhóis (muito mais evoluídos do que nós) concordam!

Nós não, pois claro. Como somos “os maiores”, fazemos coro com algumas das nações mais desnorteadas e patéticas da Europa actual, como a Polónia ou a República Checa (a “nova Europa”, como lhes chama G. W. Bush…), e tentamos simplesmente fazer aquilo em que nos tornámos dos maiores peritos no Mundo: MANTER TUDO COMO ESTÁ, para que ao menos o Futuro nunca cá chegue, já que infelizmente não há maneira de conseguirmos operar o milagre de FAZER COM QUE O PASSADO REGRESSE, que é verdadeiramente, admitamo-lo, o nosso maior e mais inconfessado sonho!

Para uma Nação que há séculos vive obcecada e paralisada pela memória do seu passado grandioso e não se interessa peva pelo seu futuro, para um Povo que, no dizer de um conhecido filósofo actual, vive o presente com “medo de existir”, é natural que uma ideia que contenha em si algum “gérmen” de progresso, alguma perspectiva minimamente inovadora sobre seja o que for, seja de imediato apontada como “perigosa”. Eles bem sabem porquê…

Mas bastava a esta gente de curtos horizontes olhar um pouco à sua volta para perceber que, no Mundo actual, não sobra lugar para este tipo de entendimento da História, que o Mundo do Futuro, que queremos melhor, mais pacífico e mais justo (pelo menos nós que temos filhos), não pode ser construído com base em ideologias ultrapassadas e condenadas pela evolução da Humanidade, mas sim pela supremacia dos valores morais e intelectuais que, em grande parte, são e foram desde sempre apanágio da nossa Civilização que, como se sabe, recebeu e continua a receber da cultura europeia alguns dos seus maiores contributos!

Isto obviamente sem prejuízo de se valorizarem, na justa medida, as diferentes formas culturais e tradições europeias – e um patriotismo saudável pode e deve ser cultivado, mas apenas enquanto amor e respeito pela nossa cultura, pelas nossas gentes e pelo nosso território, não como ódio ou receio do que é estranho, “de fora”, ou diferente.

Lembremo-nos de que a ideia de Europa não nasceu ontem, nem sequer no século passado! Já os romanos possuíam uma certa forma de cidadania europeia, que era oferecida mesmo às populações vencidas que assim o desejassem! Que as Igrejas cristãs (ortodoxa e católica, sobretudo) cimentaram toda a sua estrutura e hierarquia numa base supra-nacional (e usando até uma língua “neutral”, como o Latim!), que já os próprios Cruzados combatiam sob bandeiras e estandartes próprios (a cruz de Cristo) e sem referências nacionais ou étnicas, e assim por diante.

E, quer se queira quer não, as realidades do Mundo actual desmentem os que ainda julgam possível manter a História como fonte de legitimização para os Estados do futuro e continuar a mesma a ser feita e ensinada com base em perspectivas e pontos de vista nacionais (ou nacionalistas): basta aliás sintonizar na televisão o canal “História” para se ter já hoje ao dispor, em casa, uma forma de “Manual único” sobre a História europeia e universal, onde mesmo os acontecimentos mais delicados são apresentados com todo o rigor e isenção, apesar de sob uma perspectiva reconhecidamente “americanocêntrica”!

Mesmo assim, não acredito que algum espírito francês ou inglês se escandalize com a forma como, por exemplo, é tratada neste canal a célebre Batalha de Azincourt, ou que algum cidadão alemão se revolte contra as sempre continuadas revelações sobre o nazismo, ou que algum espanhol se indigne se algum dia lá aparecer uma reconstituição da derrota da “sua” Invencível Armada, ou até, quem sabe, da... Batalha de Aljubarrota!

Mas quando, quando poderão os portugueses reagir da mesma maneira se um dia lhes for mostrada de forma isenta a Batalha de Alcácer-Quibir, a aniquilação dos reinos africanos nos Séc.s XV e seguintes (em particular o do Zaire), a feroz conquista de Malaca, a destruição da cultura ameríndia no Brasil, a devastação do território nacional causada pelas “lutas” ditas liberais (que foram, na realidade, uma autêntica guerra civil), ou mesmo toda a verdade sobre o Estado Novo e a Guerra Colonial?

Na já longínqua «Expo’92», em Sevilha, no auge da enorme vaidade ibérica relacionada com as comemorações dos quinhentos anos de “descobertas” várias – América, caminho marítimo para a Índia, Brasil, etc.… –, uma só frase, escrita à entrada do muito interessante mas sóbrio pavilhão da Alemanha (apesar de recém-unida e com o orgulho nacional no seu apogeu desde 1945), deitava subtilmente por terra todo esse triunfalismo balofo e risível dos luso-castelhanos:
«– O MAIS IMPORTANTE NÃO É A DESCOBERTA EM SI, MAS SIM O QUE CONSEGUIMOS FAZER COM ELA!»...

Ant.º das Neves Castanho.

2 Comments:

Blogger Claudia said...

Li o seu texto, e considero de uma enorme ousadia as críticas negativas que faz ao nosso país e à nossa cultura. Não sou uma portuguesa que vive inocentemente achando que aqui tudo já é evoluído e que pertencemos à União Europeia,e temos o mesmo nivel de desenvolvimento!Não, eu tenho plena consciencia do atraso cultural e económico do país!Mas acho inocência da sua parte achar que um manual único poderá ser um "manual de verdade", imparcial e fonte de conhecimento puro. Pois, na história não há verdades absolutas, nem consenso,e nunca haverá. E com o manual
unico, serão os GRANDES que "puxarão a brasa para a sua sardinha" aniquilando paises pequenos como os nossos. Os alemães decidiram que a segunda guerra mundial ficará de fora, por ser uma questão controversa. Eles nao querem é ser mal falados!Mas que lógica tem agora os meninos não aprenderem a segunda guerrra mundial?
Para dizer a verdade, o manual único,como seguimento de Bolonha é uma das maiores palermices que foram inventadas e se o ensino está em crise, ele só ficará cada vez pior. Sou uma futura professora e defendo a qualidade de ensino acima de tudo, conceito que se afasta destas modernices de manuais europeus, e por aí fora.

cumprimentos,
Claudia S.

3:59 da tarde  
Blogger Ant.º das Neves Castanho said...

Obrigado Cláudia, mas não me interprete mal. Eu escrevi e mantenho que defendo a ideia de um Manual único, mas como mais uma perspectiva a somar às restantes, não como Manual obrigatório e exclusivo. Isso são coisas, aliás, do tempo da "outra senhora", que em Portugal foram ultrapassadas com o 25 de Abril.


Discordo em absoluto da interpretação que faz das minhas críticas: elas NÃO se dirigem ao País nem à Cultura portuguesa, que eu defendo o mais possível. Dirigem-se, sim, ao ensino da História em Portugal, que eu ainda aprendi com o bizarro e expressivo nome de "História Pátria", no tempo em que, segundo as palavras do Ditador Salazar que na altura nos "conduzia" (verbo que, em alemão, se diz "führen"), "não se discutia a Pátria, nem a sua História!".


Agora já pode discuitir-se tudo, felizmente. E não é necessário uma especial coragem para defender que a nossa História foi ensinada de uma maneira demasiado parcial e acrítica.


Se vai ser Professora, desejo-lhe muitos sucessos nessa dificílima e nobre profissão (que em tempos também já foi a minha) e tente nunca esquecer a grande responsabilidade que lhe vai caber na construção dos portugueses de amanhã!


Ensinar é transmitir conhecimentos e igualmente capacidade de ir buscá-los e, sobretudo, retê-los e trabalhá-los, não simplesmente veicular perspectivas e sabedorias datadas e cada dia que passa postos à prova por todo o tipo de "modernices", como lhes chama, mas que ao longo dos tempos permitiram construir aquilo a que se costuma chamar a Civilização...

2:47 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home