quarta-feira, março 23, 2005

Administração Pública: que Reformas?

Galgando a discussão sobre o papel do Estado na sociedade e em particular na economia – por mais ideológica e/ou partidária (o que, neste caso, poderia constituir ruído) –, importa não deixar continuar a correr por si, de uma forma demissionária, as sucessivas e auto-designadas “Reformas da Administração Pública” (RAP), antes questionando o “senso comum” dos pressupostos, prioridades e soluções.

Pretendo afirmar o seguinte conjunto de ideias e propostas:

- O insucesso das inúmeras e sucessivas reformas da administração pública é estarem sempre – e quase só – centradas nos seus trabalhadores, em vez de na forma de organização, prestação dos serviços e relacionamento com o cidadão (desburocratização);

- O «tique orgânico» – elemento estruturante do pensamento dos responsáveis da Administração Pública;

- O desmembramento e desarticulação da Administração Pública são estruturantes na ineficiência e burocracia do Estado e resultam, em primeira instância, do "tique orgânico" de criação de entidades e organismos de forma avulsa;

- Concentração e fusão de serviços não significam nem «menos Estado» nem menos trabalhadores;

- A ligeireza dos “funcionários a mais”;

- Reinventar a Administração Pública: Internalizar os procedimentos administrativos;

- O relevante para a sociedade não é «menos Estado» mas antes «leveza processual».

Dissequemos.

Responsáveis e responsabilizados.

É corrente – por alguns não será inocente – a responsabilização dos trabalhadores da Administração Pública pela burocracia e custos do Estado.

A formulação e análise de teses académicas, intelectuais ou políticas requer a existência de perguntas de despistagem, que permitam avaliar a validade das mesmas.

Sobre a tese da culpa dos “funcionários públicos” – no livro póstumo de Luís Sá, formulado provocadoramente, para a desmentir, sob a forma de "Traição dos funcionários?", a partir da intervenção de Julien Benda, «La trahison des clercs» (1928) – proporia a elementar seguinte questão: Na Administração Pública, os responsáveis são os responsabilizados?

A resposta negativa a esta pergunta de despistagem recomendaria/obrigaria à revisão da tese – sublinhe-se que o «basismo» da mesma demonstra-nos a inevitável conclusão sobre a fragilidade da nossa elite (discussão que teremos um dia que aprofundar) – à alteração das prioridades e soluções gizadas.

No Estado, como no sector privado, há pessoas a quem são atribuídas as competências que as habilitam a definir objectivos, prioridades e afectação de recursos e sua organização. Esses são os responsáveis. Essas funções são melhor remuneradas (entre outras) precisamente porque acarretam maior responsabilidade. Em caso de insucesso, deveriam ser os primeiros a responder por ele.

No entanto, eventualmente sabendo corresponder aos valores dominantes, as reformas da Administração Pública têm incidido com particular expressão sobretudo em medidas relativas aos trabalhadores.

Aquando da apresentação da última RAP, o então Primeiro-Ministro Durão Barroso, anunciava, para a efectivação de uma das três prioridades (a área da Organização), uma única medida concreta: “é neste quadro de referências que importa encarar, entre outros aspectos, o regime do contrato individual de trabalho”.

Aliás, no essencial, a reforma implementada resumiu-se à alteração do “sistema integrado de avaliação do desempenho da Administração Pública (SIADAP)” – proponho-me um destes dias abordar igualmente o slogan associado de “gestão por objectivos”… O problema não será os objectivos serem os errados? – bom, o evidente é que ninguém sabe, ou pode, avaliar os ganhos de produtividade da Administração em resultado de tal “Reforma”.

O actual governo também fez do número de funcionários o slogan principal da sua RAP: "Reduzir nos próximos 4 anos em 75 mil o número de funcionários públicos, com a regra de uma admissão por cada duas saídas (por aposentação ou desvinculação).”

Nota: Não pretendo assim demonstrar que os trabalhadores da AP são todos bons funcionários, bem preparados e motivados, mas antes dizer que essa não é a característica que distingue o sector público do privado, essa não é a causa da burocracia e da ineficiência da Administração no seu todo, esse não é o âmago da questão. Há trabalhadores inexcedíveis e outros que se aproveitam da situação.

No essencial, do SIADAP (aplicado apenas aos funcionários da Administração Central) nada resultou para o cidadão nem para a sociedade no seu conjunto. Em suma, também aqui se aplica o princípio de que o “ódio é um desperdício quando apontado ao alvo errado”, como o demonstra a sucessão de insucessos das auto-proclamadas RAP. É urgente redireccionar a reforma e “Reinventar a Administração Pública” (expressão utilizada pelo ex-Vice-Presidente Norte Americano Al Gore, que dá título ao seu livro sobre a matéria).

O «tique orgânico» – elemento estruturante do pensamento dos responsáveis da Administração Pública.

Com diferentes expressões ao longo das duas últimas décadas, sucedem-se, por levas, a criação de organismos (com maior ou menor grau de autonomia) como Institutos, Unidades de Missão, Gabinetes, Agências, Fundações, ou, hoje muito em voga, as Autoridades e as Entidades Reguladoras.

A par deste fenómeno registam-se, complementarmente, outros dois (com os mesmos resultados práticos): a Empresarialização (que, por sua vez, reproduz o mesmo processo de “especialização” pela sua sub-divisão) e as organizações de natureza territorial (como sejam agora as Comunidades Urbanas, ou as, até aqui, Associações entre Municípios, nas suas diversas formas)... O que parece mesmo ser comum ao longo dos tempos são as Comissões... e talvez também as consultorias.

A criação sucessiva de organismos e entidades raramente não é sustentada na insuportável burocracia e ineficiência do regime tradicional da Administração – em particular as Direcções- -Gerais.

Salvaguardando as diferenças que resultam da condição de legislador e de responsáveis dos órgãos executivos – em particular no caso das autarquias que estão confrontadas com as possibilidades legislativas existentes – parece incompreensível que ambos (para além das Comissões para as RAP) não tenham percebido que havia uma tendência para a situação de caos que se foi configurando quanto à diversidade de regimes aplicáveis às inúmeros soluções orgânicas que se foram adoptando – ver o levantamento e relatório produzidos pelo Grupo de Trabalho dirigido pelo Professor Vital Moreia para o então Ministério da Reforma da Administração Pública.

Antes de abordar as implicações desta segmentação dos serviços e organismos, há uma questão para a qual, por mais leituras, conversas e trocas de opiniões, não consegui ainda encontrar uma resposta aceitável:

O conjunto de valores de salvaguarda do interesse público – como a transparência, imparcialidade, etc. – que o legislador entende serem indispensáveis nas formas tradicionais dos serviços públicos – em particular nas Direcções-Gerais – que justificam a não alteração das regras e regime aplicáveis, podem ser ultrapassadas sobre outra forma de regime – mesmo regulando o mesmo interesse público – como é o caso das empresas, dos institutos, etc. Mas não são os mesmos capitais públicos? Não são os mesmos fundamentais interesses públicos?
Isto é, um Euro do Estado, gerido por uma Direcção-Geral tem que obedecer a princípios e procedimentos que salvaguardem os superiores interesses públicos. Se esse mesmo Euro passar a ser gerido por uma outra entidade pública, já esses procedimentos podem ser aligeirados ou dispensados de todo?

E em resultado da não reavaliação e reapreciação desses procedimentos nos organismos tradicionais da AP, converteram-se estes, ou parte destes, em inúmeras soluções orgânicas capazes de subverter a “rigidez” processual. O projecto de Lei sobre os “Institutos Públicos”, apresentado no seguimento do estudo coordenado pelo Professor Vital Moreira, refere mesmo que “(…) se criavam organismos paralelos, dotados de regimes casuísticos, muitas vezes determinados pela fuga aos sistemas de controlo instituídos”.

Este não é o único factor que justifica esta proliferação de soluções orgânicas e de regimes aplicáveis a organismos que visam a prossecução do interesse público.

Assim, da análise da actual estrutura da AP, é forçoso verificar-se que a sua organização resulta, em primeiro lugar, de um «tique orgânico» dos seus responsáveis (dirigentes e políticos). Pelo menos nas duas últimas décadas, sempre que se identifica um problema, se define uma prioridade, se estabelece um Plano, Programa ou simplesmente um objectivo, têm predominantemente associada uma resposta orgânica de constituição de novas entidades ou organismos.

A título de exemplo, à denúncia de corrupção na Junta Autónoma das Estradas correspondeu a sua transformação em três Institutos, a aprovação de um Plano Nacional de Logística representou a criação do GabLogis (Gabinete para o Desenvolvimento do Sistema Logístico Nacional) a definição dos objectivos de um novo aeroporto internacional de Lisboa e da rede de alta velocidade (ferroviária) significou a constituição de duas empresas para esse fim – o NAER e a RAVE.

Sobre estas duas últimas, esta opção é tanto mais espantosa quanto já existiam duas empresas de capitais públicos responsáveis pela manutenção e gestão das respectivas infra-estruturas – a ANA e a REFER – tanto mais que sobre elas recai igualmente o anátema de custos resultantes de "elevados salários" e de excesso de pessoal fruto de um "histórico público", o que aparentemente recomendaria a atribuição dessas competências (estudo e implementação dessas novas infra-estruturas) a essas empresas, quer para diluição desses custos quer para aproveitamento do "know-how" aí instalado.

Para ilustrar a realidade resultante deste “tique”, no ano de 2004, o sector dos transportes tinha mais de 46 organismos na dependência de pelo menos dois Ministérios e três Secretarias de Estado.

Como comentário lateral, há ainda a acrescentar duas outras variáveis que podem contribuir, mesmo que não evocáveis pelos próprios (e não extensíveis a todos, naturalmente. Há gente séria e sincera neste processo) nem quantificáveis/demonstráveis, para esta dinâmica de desmembramento:

- por um lado, a falta de qualidade das nossas elites (que um dia me proponho desenvolver) – dirigentes, há muito esgotados de soluções, tentam colmatar a falta de iniciativa e capacidade consumindo uma parte do seu mandato em reorganizações e reestruturações, o que se tornará simultaneamente um alibi para os insuficientes/maus resultados do seu mandato e levando ainda como bónus uma marca da sua presença;

- por outro, os benefícios económicos e/ou mordomias que os dirigentes/políticos podem obter pela segmentação das competências e atribuições por diversas entidades (mesmo auferindo menos pela “actividade mãe”) passando ainda, ou pelo menos, a dispor de lugares de direcção para distribuir.

Importa sublinhar que para este processo de desintegração da AP em nada contribuíram – nem tão pouco foram tidos nem achados – os respectivos trabalhadores.

Em resultado deste “tique”, por estas e outras razões, temos crescentemente uma estrutura dos serviços públicos caracterizada pelo desmembramento (porque se vai desdobrando sem um fio condutor, por critérios conjunturais) e pela desarticulação (porque deste processo avulso de multiplicação de organismos e serviços com crescente complexidade resultam desde logo, simultaneamente, vazios e sobreposição de competências).

Desmembramento e desarticulação da Administração Pública.

A Administração Pública que temos não é o resultado da definição global dos serviços nem do ajustamento da Administração às suas atribuições. Há décadas que não é pensada como um todo. Ela é o somatório de medidas avulsas, sobrepostas, em função de situações absolutamente conjunturais.

Para além das evidentes perdas de eficiência (maior número de entidades a serem chamadas a um mesmo processo ou projecto, a não articulação entre as várias especialidades, tempo de resposta, etc), do aumento da burocracia (não só interna mas também para os cidadãos e os agentes sociais e económicos) e dos custos administrativos (directamente pela perda das economias de escalas e outros), todos eles e cada um por si já suficientemente graves, três outras consequências adquirem uma expressão estruturante:

- a ausência de uma visão estratégica, quer para cada área, quer para o país no seu conjunto, já que cada sector tem agora as responsabilidades e competências sub-divididas por inúmeros organismos e não poucas vezes mal definidas ou pura e simplesmente omissas. Deste facto resulta também a perda de oportunidades (Programas Comunitários, etc.) e a incoerência das orientações;

- intervenção avulsa, não havendo planeamento nem definição coerente de objectivos nacionais e das áreas de acção, só por coincidência as iniciativas de cada organismo (sub-sub-sectorial) poderiam corresponder a um fim comum com as demais entidades do sector, sendo fácil perceber que com facilidade se desenvolverão projectos similares em diferentes organismos (também por falta de articulação) havendo outras áreas em que ninguém intervém por considerar que tal é competência de outro ou de outros;

- falta de responsabilidade, desde logo porque esta se dilui por inúmeros organismos.

Por outro lado, face à forma como se criaram as organizações e se definiram as competências, é possível não ser imputável a ninguém a ausência de estratégia, a observância de objectivos, de programas ou de projectos, mesmo tendo cada entidade cumprido a totalidade das suas atribuições. Isto é, trata-se de um fenómeno estruturante, considerando que tal se verifica mesmo num cenário de total competência.

Todas estas expressões resultantes da multiplicação de organismos e de desarticulação são igualmente agravadas pelo regime de cumplicidade – não estou aqui a considerar a corrupção, que é de natureza diferente – que a eternização no poder durante mais de 25 anos dos mesmos responsáveis (na verdade não temos propriamente um regime de alternância democrática, mas sim de rotação entre os diversos organismos), e que leva a que a AP não seja entendida como um todo, não se questionem objectivos, competências nem procedimentos, e que na generalidade não se queira questionar o «statu quo» entre organismos.

Concentração e fusão de serviços não significam nem «menos Estado» nem menos trabalhadores.

Com os recursos informáticos e de comunicações actuais o desmembramento não é já, há muito, justificável sequer à luz da dificuldade na gestão de grandes estruturas. A concentração e fusão de serviços deveria ser estruturante na RAP, mas para que assim aconteça será necessário que não se proceda de forma avulsa como aconteceu com a criação de organismos.

É sintomático que os que sistematicamente argumentam com as boas práticas do sector privado no exercício do poder da coisa pública efectuem precisamente o contrário, sem que nada nem nenhuma legislação os obrigue a tal.

Aliás, quem omite nas sucessivas Reformas a concentração e fusão de serviços é precisamente quem passa o tempo a remeter para a “cultura de gestão empresarial” e “trazer para dentro da AP (...) os conceitos, regras e mecanismos que vigoram com sucesso no domínio das empresas”.
A pergunta impõe-se: o movimento actual no sector privado não é precisamente de concentração, aquisição e fusão?

Duas questões têm que ser sublinhadas quando se fala de concentração e fusão de serviços públicos: nem isso significa a redução do papel do Estado na sociedade; nem despedimento de trabalhadores (o que já não se aplica quanto aos lugares de chefia!).

Importa também que o medo – de, a reboque da reorganização dos serviços, se aproveitarem para “atacar as competências do Estado e se despedirem trabalhadores" – não constitua um factor de tolhimento de apresentação de propostas e melhoria da eficiência e produtividade do Estado. Até porque a manutenção da situação degrada o seu prestígio na sociedade e junto dos cidadãos e isso é que abre o caminho à sua “privatização”.

A ligeireza dos “funcionários a mais”.

Esta é uma das ideias/mitos mais disseminadas na sociedade e que por isso necessita de ser mais dissecada. No entanto, não são adiáveis alguns comentários sobre esta matéria:

O primeiro é que não faz de todo sentido afirmar que há funcionários a mais sem se clarificar qual o papel do Estado. Isto é, Um, é de mais se for para não fazer nada, Dois, é de menos se for para assegurar serviços de saúde, educação, justiça, etc. Neste sentido, o número de funcionários não é indiferente às atribuições e objectivos. Dizer que são a mais ou a menos sem clarificar para quê é qualquer coisa que não tem o mínimo sentido.

Em segundo lugar, importaria que quem diz que “são a mais” tivesse alguma noção que fosse sobre quais as características (formação e competências) e onde estão (sectores de desempenho e áreas geográficas). Isto é, para quem acompanha este tema, evidente mas não o é para a generalidade da sociedade.

Alguns dados: haverá cerca de 700 mil funcionários, dos quais 330 mil são da Administração Central. Destes, 250 mil são de carreiras de regime especial e corpos especiais (Militares e forças de segurança, docentes, alguns sectores da saúde, oficiais de justiça e de Contribuições e Impostos), razão pela qual o SIADAP se aplica apenas a cerca de 100 mil.

Por outro lado, este discurso do excesso de pessoal é sistematicamente contrariado pelas reclamações e notícias com que diariamente convivemos. Na justiça – fundamental num Estado de direito – prescrevem inúmeros processos por não cumprimento atempado de procedimentos burocráticos; na saúde – simplesmente fundamental – faltam médicos e enfermeiros e…; na segurança faltam polícias e muitos estão a cumprir tarefas burocráticas e administrativas, etc.
Naturalmente algumas das competências funcionais estão hoje desadequadas. Há dez anos, a generalidade dos ofícios era redigida à máquina pelos Auxiliares Administrativos. Hoje, com a informatização, a larga maioria é produzida pelos próprios técnicos. Isto não significa que a carreira de auxiliar administrativa se tenha extinto. Hoje há também carregamentos de bases de dados, gestão processual, etc. .

Reinventar a Administração Pública: Internalizar os procedimentos administrativos.

Estou então convencido que as duas maiores prioridades no urgente processo de Reinvenção da Administração Pública – independentemente da necessária clarificação do papel do Estado – são a reorganização orgânica no sentido da concentração e fusão de serviços e a adopção do princípio da internalização dos procedimentos e do processo administrativo e burocrático.
Este conceito é mais lato do que o do “cartão único” e naturalmente do que a “Loja do Cidadão” (que representam melhorias e por isso não são de todo negligenciáveis).

Mas a ambição maior deve residir na determinação de que, se diferentes serviços precisam da mesma informação ou, se um processo carece de parecer ou contributo de vários organismos do Estado, então competirá ao Estado, internamente (e só com os seus recursos), efectuar as diligências que entenda necessárias para os obter dos demais serviços.

O Estado deve apresentar-se como um todo. Para o cidadão, a estrutura orgânica não pode ter repercussões ao nível do seu contacto com os serviços. Se os responsáveis da Administração decidem criar "n" organismos para tratar de uma matéria, terão que assumir as consequências da troca de dados e processos entre si, não podendo fazer recair sobre terceiros a necessidade de transmitir às "n" entidades os mesmos dados ou assegurar a comunicação, tramitação e obtenção dos "n" pareceres.

A minha convicção é a de que quando o Estado tiver que fazer ele próprio o périplo entre serviços que hoje obriga o cidadão a fazer, dois efeitos se produzirão:

- Por um lado, os responsáveis da Administração, ao verificarem a sobrecarga dos serviços, tenderão a eliminar rapidamente exigências supérfluas (que as há);

- Por outro, acelerarão mecanismos de comunicação e articulação entre organismos de forma a simplifica-los e desburocratizá-los.

Para o cidadão, para a sociedade em geral e para a competitividade (alibi para tanta coisa) é demasiado caro (em tempo, dinheiro e eficiência) que não seja sobre os serviços que se repercuta os custos das medidas dos dirigentes da Administração.

Enquanto as consequências das decisões recaírem, não sobre quem as toma (os dirigentes e responsáveis políticos da Administração), mas para os outros (os cidadãos e as diferentes entidades), dificilmente os responsáveis políticos terão a percepção do seu verdadeiro impacto. Este facto é também uma das causas para que o “tique orgânico” tenha assumido as dimensões que assumiu: é que os custos burocráticos e processuais recaíram em grande parte sobre os cidadãos e a sociedade.

O relevante para a sociedade não é «menos Estado» mas antes «leveza processual»
Estas duas propostas – a re-estruturação dos serviços e a internalização da burocracia – não têm em nenhum momento, sequer implícita, a redução do papel do Estado ou de um só que seja trabalhador da AP (no sentido mais lato, excluídos naturalmente os de vínculo político, que em princípio devem ter apenas uma relação conjuntural com os serviços).

A interiorização deste conceito é importante não só para desburocratizar e tornar insignificante o peso do Estado (mantendo as suas atribuições) na sociedade e potenciar a competitividade. Ela é fundamental para a própria eficiência e cumprimento das suas obrigações, competências e objectivos.

Ninguém conhecerá completamente o conjunto de obrigações burocráticas a que está obrigado face ao aparelho do Estado. Todos conheceremos muitos exemplos.

Um dos exercícios mais elementar e elucidativo é o da tentativa de identificar a quantos e a que serviços terá um cidadão que participar a mudança de casa. Pode resumir em: “informar que o cidadão A deixou de morar na rua Y para passar a residir na rua Z” (se começou a fazer o cálculo e for do sexo masculino, comece pela caderneta militar... para não correr o risco da a esquecer).

O resultado deste desdobramento da mesmíssima informação é – além do tempo e custos para o cidadão – o de que, provavelmente, nenhum dos serviços públicos terá a sua Base de Dados (que custa muito dinheiro a desenvolver e a manter) completa, correcta e actualizada. O resultado é que, naturalmente, cada um dará prioridade apenas aos documentos (serviços) de que mais necessita ou sobre o qual receia o medo de poder ser fiscalizado (por exemplo os documentos do automóvel).

Outro exemplo: segundo dados publicados na revista Visão, nos dois últimos anos, o Estado gastou 2,5 milhões de Euros anuais no processo de recenseamento eleitoral. Ora, qualquer pessoa com um conhecimento rudimentar sobre Bases de Dados (BD) sabe que o recenseamento eleitoral mais não é do que uma “consulta” à BD do Arquivo de Identificação Civil, dos registos com data de nascimento posterior à que corresponderá a nesse dia ter mais de 18 anos, por freguesia. Tão só. Mas não é assim que se processa, como sabemos.

Mas o recenseamento eleitoral justifica-se, apesar dos custos, porque os dados são mais fiáveis (leia-se, o Estado cumpre melhor a sua obrigação)? A resposta é negativa. Não, definitivamente, não. O recenseamento eleitoral continua a apresentar valores significativos de “eleitores fantasma” (não é capaz de expurgar dados errados, eleitores falecidos, etc.) e, para além disso, uma parte importante das pessoas não tem aí actualizada a sua morada – continuando a votar na freguesia de residência dos pais ou da anterior habitação (que também contribuirá para uma parte da abstenção) e que de alguma forma pode falsear a realidade eleitoral (a verdade eleitoral é uma missão do Estado Democrático).

Em suma, o Estado gasta e afecta enormes recursos, faz gastar muito tempo e dinheiro àqueles que, em princípio, deveria servir e, para cúmulo, o resultado não é credível, pelo que manter este caminho é, no mínimo, de utilidade duvidosa. Para além disso, parece ainda ser questionável se é hoje, com os recursos tecnológicos e de comunicações, legítimo exigir que seja o cidadão a proceder a essa diligência.

Poderíamos então considerar que o cartão único cumpre a totalidade dos objectivos da internalização dos procedimentos e do processo administrativo e burocrático? Ainda não. Poderá responder a eliminação de importantes burocracias (nos pedidos dos respectivos cartões) mas não é estruturalmente a solução desburocratizadora (desde logo, porque a relação dos cidadãos com o Estado não se resume ao pedido de cartões). Tudo o que ficar fora deste cartão manterá as mesmas dificuldades, logo, em boa parte dos efeitos descritos na capítulo da “internalização” – eliminação de pedidos supérfluos e a criação de mecanismos de comunicação e articulação entre serviços – não se cumprirá.

Mesmo na obtenção de um cartão – embora ainda não se conheçam os contornos burocráticos – corremos o risco de manter procedimentos inadmissíveis para o cidadão.

Por exemplo: se temos a felicidade da paternidade, o Estado manda-nos ir à Conservatória do Registo Civil proceder ao respectivo registo, obtendo uma folhinha «Boletim de nascimento», com a indicação do número sob o qual ficou feito o registo. Se no mês seguinte (ou em qualquer outra altura) precisar de, ou quiser, sair do País, mesmo que para o espaço Comunitário, precisará de obter um Bilhete de Identidade da criança. Ao chegar ao Arquivo do Registo Civil (ARC) – na dependência do mesmo Ministério, mas que, ao contrário do que o nome poderia fazer esperar, não tem o arquivo dos nascimentos registados no País e inscrito nas Conservatórias – será informado de que precisará de ir à Conservatória pedir e pagar uma fotocópia do registo aí efectuado. Trazer novamente com a demais documentação, para então poder obter o tal BI.

A minha expectativa é que quando for o Estado a ter que obter da Conservatória a Certidão uma opção será tomada: ou no acto de inscrição na Conservatória, esta passa a enviar automaticamente para o ARC, ou bastará ao cidadão entregar cópia do «Boletim de nascimento» e nele constará os elementos necessários ao ARC, ou em última análise o cidadão registará uma única vez e directamente o seu filho no ARC e este enviará (se necessário) para que a Conservatória proceda à respectiva inscrição. Estas ou outras medidas serão tomadas, mas seguramente que não mandarão, pelo menos por muito tempo, os funcionários do ARC a cada Conservatória.

Dirão alguns: E as taxas? Qual é o problema do cidadão em vez de ir à Conservatória pedir a cópia e pagar a taxa, pagá-la (no mesmo valor, se tal se justificar) no ARC quando faz o pedido do BI? O Estado não perde 1 cêntimo e o cidadão – e a produtividade, senhores – ganharão infinitamente.

Por outro lado, note-se que a «Loja do Cidadão» é um processo de concentração geográfica (naturalmente útil) dos serviços de atendimento, mas não um processo de desburocratização da administração. Se necessitar de transmitir o mesmo dado (a morada, por exemplo) a "n" entidades terá que se apresentar em "n" balcões. Poupa-o a ter que se deslocar para fora de um só edifício para efectuar essas obrigações, o que não sendo mau, não é uma Reforma e muito menos a Reinvenção que se espera e necessita.

Estas duas propostas de repercussões estruturantes não colidem naturalmente com medidas como:

- A urgente clarificação das competências e lugares de natureza política e técnica;

- O fortíssimo reforço dos mecanismos de exigência da qualidade, competência e cumprimento por parte dos serviços;

- A valorização e auscultação dos funcionários e agentes do Estado;

- A transparência e prestação de contas periódica (menor que anual) de cada serviço;

- A regulamentação e restrição à acumulação de cargos de direcção e à circulação dos dirigentes entre os diversos organismos...

E tantas outras, que todos conhecemos e sabemos que poderiam reconciliar os cidadãos com o Estado e ilibar, definitivamente, os pejorativamente intitulados «funcionários públicos».



António Sérgio Manso Pinheiro
Março/2005

quarta-feira, março 16, 2005

Descentralizar, Desconcentrar, Deslocalizar.

Hoje foi muito debatido o regresso a Lisboa das seis Secretarias de Estado pulverizadas pelo território nacional (Golegã, Aveiro, Faro, Coimbra, Braga e Évora) pelo anterior Governo.

A este propósito, muitas opiniões se expenderam, quase todas muito mal informadas. É uma pena ver um tema tão banal ser tão desconhecido da generalidade dos portugueses, que continuam a não saber distinguir estes três conceitos básicos.

Antes de se poder definir e solidificar uma opinião sobre qualquer assunto, é preciso algo mais do que a simples intuição - é necessário possuir algum conhecimento sobre o mesmo!

E então em que consistem, afinal, Descentralização, Desconcentração e Deslocalização?

É tão simples... Descentralização é o sistema pelo qual o poder de decisão sobre certas matérias é conferido a órgãos representativos apenas de uma determinada parcela do espaço total sobre o qual se exerce o poder de nível superior, os quais NÃO ESTÃO SUBORDINADOS aos órgãos representativos deste nível de poder. Tomemos exemplos:

1º - As autonomias dos Arquipélagos dos Açores e da Madeira são uma forma clássica de descentralização: o poder central do País define algumas competências específicas que confere a órgãos regionais que, sobre essas mesmas competências (sejam elas Legislativas ou Executivas), são soberanos, EM EXCLUSIVO, ou co-responsáveis no território da sua Região;

2º - O Poder Local é também uma forma habitual de descentralização: no território de cada Concelho, os respectivos órgãos autárquicos são os únicos são responsáveis (ou co-responsáveis) por determinados assuntos, em substituição do Estado;

3º - A delegação de competências nas Juntas de Freguesia, por parte de uma Câmara Municipal, é também uma forma de descentralização.

Em vez disto, a Desconcentração consiste na criação de organismos com atribuições localizadas, mas DEPENDENTES da direcção do organismo central. Exemplos: as Direcções Regionais dos organismos do Estado (ou de Empresas Públicas), as quais são vocacionadas para lidar DE PERTO com as realidades da sua circunscrição geográfica, ou territorial, mas NÃO TÊM AUTONOMIA de decisão! O exemplo clássico são as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regionais, que estão sedeadas nas chamadas Regiões-Plano (N. U. T.'s II), mas que dependem funcionalmente da respectiva tutela ministerial.

Finalmente, a agora inventada "deslocalização" consiste apenas em transferir serviços para outros locais, SEM ALTERAR AS RESPECTIVAS COMPETÊNCIAS, concretamente, mantendo a mesmíssima abrangência territorial.

Simplificando: os Países europeus, na sua maioria, são DESCENTRALIZADOS, quase todos em dois níveis (Regional e Municipal) - Portugal apenas o é no segundo -, os organismos governamentais estão geralmente DESCONCENTRADOS, isto é, tal como as Empresas (e até os Clubes de Futebol...), possuem Delegações locais para estarem mais próximos das realidades, mas sem que isso implique qualquer transferência de poder de decisão, a qual permanece sempre centralizada; alguns organismos especiais (como a O. N. U., por exemplo, ou a U. E., e galhardamente também o nosso XVI Governo Constitucional...) preferem não ter todos os seus órgãos na mesma localização geográfica, por razões várias, optando por DESLOCALIZAR alguns organismos para locais diferentes, mantendo contudo a sua abrangência geral, em termos de competências.

Assim, ao contrário do que muita gente pensa, a deslocalização das seis Secretarias de Estado decidida pelo anterior Primeiro-Ministro NÃO constitui sequer uma desconcentração (o poder dessas Secretarias continuava concentrado, fosse em Coimbra, em Braga, ou noutra qualquer sede), muito menos uma forma de DESCENTRALIZAÇÃO, pelo simples facto de que o poder que elas exerciam onde estavam abrangia, POR IGUAL, o todo nacional. Ou seja, colocar uma Secretaria de Estado na Golegã não significa que os problemas específicos desse Concelho passem a ter um órgão próprio, uma vez que as funções desse organismo são exactamente as mesmas, quer ela tivesse sido localizada na Golegã, ou em Paio Pires.

A única diferença é que, para quem mora na Golegã, essa Secretaria de Estado passou a ficar perto (eu nunca fui a uma Secretaria de Estado, não sei bem que interesse isso possa ter...), mas por exemplo para quem mora em Vila Franca, ou em Mafra, ou na Lourinhã, passou a ficar mais longe. Vantagens? Insignificantes...

É como se a Capital de Portugal, em vez de ser Lisboa, passasse a ser 89% Lisboa, 2% Coimbra, 3% Braga e assim por diante. NÃO SE AVANÇA UM MILÍMETRO EM TERMOS DE DESCENTRALIZAÇÃO!

Apenas se baralha tudo muito mais e, obviamente, se faz maior desperdício de recursos, privados e públicos. Uma lástima...

Bom, por agora penso que será melhor deter-me. Proximamente tentarei dar uma panorâmica de como os Países nossos parceiros na Europa resolveram esta questão da Descentralização que, não sendo uma prioridade (infelizmente...), é importante e contribui decisivamente, na minha opinião, para conferir VANTAGENS COMPETITIVAS a esses Países face ao nosso. É pena, muita pena, que alguns "Velhos do Restelo" não tenham compreendido isto há sete anos!... Mas é uma mera questão de tempo. Quanto, é o que importa neste momento, acima de tudo, influenciar!

E regresso ao início: neste assunto (como aliás em todos), antes de opinar, é muito conveniente APRENDER!

E esta é ainda, infelizmente, uma discussão POR COMEÇAR, no nosso País, em termos adequados.