Mais de 4 000 Freguesias em Portugal: serão todas necessárias?
Começa a tornar-se muito interessante a frequência com que estes temas têm sido suscitados em Portugal nos últimos dias…
Agora são as Freguesias e a recente proposta do Governo para alterar o respectivo mapa – atenção adversários da Regionalização, que supostamente vai “dividir” o nosso pequeno e homogéneo País: ainda não repararam que ele se encontra já hoje terrivelmente dividido em mais de quatro mil pedacinhos?...
Embora o tema seja discutível, tanto na sua importância como na sua prioridade, ainda assim acho louvável que o nosso assoberbado Governo perca algum do seu precioso tempo a preocupar-se com a nossa organização territorial, ainda que neste caso “apenas” com as Freguesias. Porque, pelo menos, tem o mérito de suscitar a discussão de algo que está à espera de reforma profunda há mais de vinte e cinco anos! E uma coisa acaba sempre por levar a outra…
Freguesias: mais de 4000. Para que servem? O que fazem? Qual a sua importância? Para além do seu valor simbólico e tradicional, claro...
Parece-me evidente que a resposta a estas questões só pode ser uma: depende! E depende de quê? Para mim, de um aspecto crucial: se ela se encontra inserida em meio rural, ou em meio urbano.
Esta a grande reflexão que me proponho hoje suscitar: a primeira questão que deve ser encarada nesta problemática é a de saber se continua a fazer sentido tratar todo o território do mesmo modo igualitário (de acordo com o chamado “princípio da universalidade”), se as Freguesias serão mesmo “todas iguais”, ou se não deveria haver algumas “mais iguais do que as outras”.
Parece uma heresia, dito assim, mas vou tentar explicar o meu ponto de vista. No actual estado de desenvolvimento (e também de povoamento) do País, estou em crer que há que encarar de frente esta realidade: há uma vincada diferença geográfica e demográfica entre as Cidades e os Campos. Entre a paisagem rural e a ocupação urbana. E sendo isto uma verdade insofismável, penso ser necessário e justo que ela se traduza em termos da nossa organização administrativa. É este, aliás, o raciocínio que fundamenta a existência de Áreas Metropolitanas e que esteve na base das reformas cosméticas introduzidas no tempo de Durão Barroso, com a instituição das chamadas “Comunidades Urbanas” e “Associações Inter-Municipais” (ou coisa que o valha: hoje já pertence tudo ao Passado…).
Com base nesta discrepância (nem sempre límpida, concedo), parece-me contudo vantajoso introduzir na Lei uma diferenciação inovadora entre Freguesias rurais e Freguesias urbanas – e estas talvez nem se devessem chamar Freguesias.
Mas não fico por aqui. Na mesma linha de pensamento, ainda que pudessem manter nomenclatura semelhante, também se deveria distinguir legalmente entre Municípios urbanos e rurais. Os últimos possuiriam Freguesias e alguns dos primeiros não – todos os que estivessem integrados em Áreas Metropolitanas!
Deste modo, as Freguesias rurais, por todas as razões e mais algumas, poderiam manter a sua configuração actual, a menos de alterações pontuais espontânea e livremente acordadas (fusões ou divisões), entre populações e órgãos representativos interessados (Assembleias Municipais e de Freguesia), quase sem interferência por parte do Governo. Até porque as Freguesias dependem muitíssimo mais das respectivas Câmaras Municipais do que propriamente do Estado…
As Freguesias urbanas, essas sim, que na esmagadora maioria dos casos não têm para as populações a importância que as rurais ainda detêm, deveriam ser profundamente re-estruturadas no sentido de uma maior homogeneização, ao contrário do que hoje sucede – vejam-se os conhecidos exemplos extremos das Freguesias dos Mártires, em Lisboa (minúscula!), e do Algueirão, ou de Queluz, no Concelho de Sintra (gigantescas!).
Só assim, aliás, faria sentido uma maior autonomia deste nível administrativo face ao poder municipal, ao contrário do que hoje se verifica. E seria possível alterar o quadro legal de competências e de meios deste novo tipo de Freguesias. Obviamente diferente do que ficaria instituído para as Freguesias rurais, que naturalmente continuariam a manter um padrão de muito maior heterogeneidade e que, para além disso, lidam muito mais directa e afectivamente com as populações que servem.
Mas a questão das Freguesias urbanas pode ainda ser aprofundada: estas entidades administrativas deveriam não apenas sofrer uma profunda re-estruturação, mas mesmo tendencialmente extinguir-se nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto! Onde haveria que, em simultâneo, re-estruturar os respectivos Concelhos!
Dou exemplos: num quadro de funcionamento normal das desejáveis (por mim) Regiões Metropolitanas de Lisboa e do Porto, com órgãos próprios democraticamente eleitos e atribuições que em parte iriam receber dos actuais Municípios, que sentido continuariam a fazer os Concelhos actuais do Porto e de Lisboa? E os Concelhos anormalmente “engordados” com populações muito mais identificadas com estas duas grandes Urbes do que com os seus próprios Municípios, como as de Gaia e da Amadora? Ou mesmo de Almada e de Sintra?
Com a extinção de todas as Freguesias no interior das duas Regiões Metropolitanas, haveria lugar para um redimensionamento dos seus Concelhos (não necessariamente todos), que assim absorveriam as reduzidas competências das Juntas de Freguesia e que colmatariam algum distanciamento que o poder metropolitano poderia de início suscitar. Seria então a vez de repensar a criação de Concelhos mais pequenos e “operacionais”, eventualmente recuperando Municípios outrora existentes (como Belém, ou mesmo os Olivais, em Lisboa), ou então redesenhando-os de raiz, com base nas realidades sócio-geográficas concretas do Presente e do Futuro previsível.
Todo um longo trabalho que esta recente proposta do Governo não faz mais do que antecipar e perspectivar, mas que carece de uma arquitectura global para poder ser encarada como visando mais além do que a mera resolução de dificuldades conjunturais…
No entanto, toda esta grandiosa reforma estrutural deve ser levada a cabo com os indispensáveis bom-senso e moderação. O nosso “mal” organizativo pode ser grande, mas a verdade é que o País vem funcionando assim há muitas décadas e não pode ser subitamente sujeito a terapias de choque.
Há pois que ter paciência e perseverança. Como perante um paciente que sabemos ter uma doença (ou uma dependência) grave e carecer de prolongado tratamento, não podemos prescrever-lhe uma cura “milagrosa” e tão drástica, que ainda lhe cause mais dano, ou trauma, do que a sua própria enfermidade…