quarta-feira, março 21, 2007

SALAZAR E O SALAZARISMO.


Parece que Oliveira Salazar volta a estar na moda, com redobrado ímpeto (e notório descaramento), à medida que a personagem e os seus feitos se vão começando a desvanecer na memória dos vivos e a entrar, progressivamente, na bruma dos tempos históricos.

Isto sucede muito por força de um novo programa televisivo, destinado ao “grande público” e pomposamente chamado “Os Grandes Portugueses”, que entre outras consequências já deu origem à curiosa intenção, manifestada pela C. M. de Santa Comba Dão, de criar um Museu local para homenagear o seu conterrâneo e nosso grande ditador do Séc. XX.

Eis portanto Salazar de novo em força na comunicação social – sinal claro de um tempo avaro em notícias importantes (e, por um lado, ainda bem, que quando não há notícias para dar há sempre boas notícias…). Mas, em todo o caso, é sempre uma oportunidade para revisitar a nossa memória colectiva sobre um tempo e um fenómeno – o salazarismo – ainda não suficientemente discutidos e digeridos entre nós, de uma forma objectiva e desapaixonada, pelo menos pelas novas gerações de portugueses.

Resistindo a cair na armadilha publicitária da tola pergunta “– Salvador ou ditador? Decida você!”, não penso sequer que Salazar tenha sido um “grande português”. Não posso conceber que seja comparável a Camões, ou Fernando Pessoa, por exemplo.

Mas foi, sem sombra de dúvida, o estadista português mais marcante da primeira metade do século passado e teve, inegavelmente, uma influência decisiva na formatação do Portugal moderno, a qual ainda hoje se faz muito fortemente sentir, mais do que geralmente se pensa. Só por isso já valeria a pena voltar a discuti-lo.

Falar de António Salazar é sinónimo de falar do salazarismo. E pode e deve falar-se deste fenómeno, sem complexos. Desde que se façam as indispensáveis distinções.

Sim, porque uma coisa é Salazar enquanto pessoa, ideólogo e estadista, outra bem diferente é o salazarismo, enquanto regime político e económico-social. Salazar será o grande responsável por ele, mas o salazarismo, infelizmente, não se esgota em Salazar, muito pelo contrário.

Assim como o papel histórico de Salazar não se pode simplisticamente resumir à criação (e manutenção ad nauseam) do Estado Novo, ditatorial, repressivo e, a comprovar-se ainda um dia, criminoso.

Mas claro que também não pode beatificamente ser reduzido às louváveis e exemplares conquistas dos seus áureos “primeiros tempos”, das quais avultam uma mais "técnica", o completo saneamento do Estado português (e, note-se, não somente das suas contas...), e outra mais “política”, a hábil diplomacia com que furtou Portugal aos horrores da II Guerra Mundial.

Concordo por isso, absolutamente, com a preservação da memória histórica do Estado Novo, mas de uma forma pedagógica e, consequentemente, útil para o presente (e, sobretudo, para o futuro), não como santuário de nostalgias e endeusamentos perversos, ou condenações simplistas, qualquer destas atitudes com óbvios efeitos nocivos para a formação do inconsciente colectivo do Povo português...

Salazar foi de facto, numa dada altura, o “salvador” de uma certa ideia de Pátria, tal e qual o foram Franco, Hitler e Estaline, mas também Churchill e De Gaulle, cada um à sua maneira. Salazar conseguiu, num primeiro tempo, unir os interesses imediatos da generalidade do Povo português – paz, estabilidade, justiça e alguma prosperidade – aos das classes poderosas, ainda que sacrificando a isso os ideais mais progressistas da Humanidade – Democracia, Liberdade, Igualdade e Direitos Humanos –, e com isso alcandorar Portugal, por uma década, à enganadora e insustentável vanguarda da evolução na Europa, granjeando por isso o respeito e a admiração da generalidade dos seus contemporâneos.

Mas foi, ao contrário de Franco, incapaz de se adaptar aos novos ventos da História após 1945 e o resultado foi que, a partir do início dos anos 50, passou simplesmente a obstinar-se, cada vez mais na defensiva, em prolongar contra ventos e marés a sua concepção de um “Portugal dos Pequenitos”, ignorante, contentinho, recatado e, assim, imune à “perversidade” da evolução mundial, arrastando com isso um Povo inteiro para a cauda da Europa, onde aliás já se encontrava nos tempos da… Monarquia! Refugiando-se gradualmente apenas no seu círculo restrito de seguidores e nas cada vez mais reduzidas classes privilegiadas, acabou por perder de todo o contacto com a Sociedade portuguesa e, consequentemente, a oportunidade de ter um papel ainda relevante no tempo que lhe sucederia, ao contrário de Franco, que não só deixou o seu País bem apetrechado para o pós-franquismo, como decidiu ainda em vida a sua própria sucessão.

Salazar, pelo contrário, com este abrupto e irreversível retrocesso político a partir dos anos cinquenta – intensificado no início da década seguinte com a perda dos territórios indianos e a eclosão das guerras coloniais em África –, foi gradualmente perdendo a energia, a credibilidade, a aura e, por fim, o próprio domínio do País, que a partir, sobretudo, da crise do assalto ao “Santa Maria” e do fenómeno Humberto Delgado já só controlava à base de muita censura e repressão.

Agora, à medida que se vai ganhando verdadeira perspectiva histórica sobre toda uma época que está prestes a desaparecer, à espera do próximo sobressalto, é importante começar finalmente a centrar o debate sobre Salazar e o salazarismo numa óptica fria, objectiva e racional, passada que está a fase das análises e avaliações ainda “a quente”.

Tenho para mim, que ainda vivi uns breves anos no seu tempo, a sensação de que Salazar, apreciações dogmáticas à parte, foi sem dúvida o político e estadista português mais importante da primeira metade do Séc. XX.

Acabou com a grave instabilidade política e social, salvou as finanças públicas da insolvência, melhorou as condições económicas da população, fortaleceu as instituições públicas e o papel do Estado, evitou que sofrêssemos o pesadelo da guerra. No final, merecia de facto um mausoléu em Lisboa e uma estátua (no mínimo um busto…) em cada Capital provincial (pelo menos nas Províncias do Continente), tal como Lenine, Estaline ou Atatürk (este ainda os tem, Mausoléu e estátuas, respectivamente em Ancara e por toda a Turquia!)…

Em vez disso fez-se pagar doutra “espécie”: a manutenção inquestionada e vitalícia no poder ABSOLUTO! E uma tal paga, com o passar das décadas, foi-se revelando excessiva, demasiado excessiva para os bons serviços outrora prestados!

Em consequência, a sua importância como estadista e político, é forçoso reconhecê-lo, esbate-se drasticamente na segunda metade do Século XX português, onde a sua influência histórica já pode perfeitamente ser comparável à de personalidades como Mário Soares, Marcelo Caetano e, até, Álvaro Cunhal, se não mesmo à de Humberto Delgado, Ramalho Eanes, Melo Antunes e outros “capitães” de Abril (como Salgueiro Maia e Vasco Lourenço), Spínola, Almeida Santos e Cavaco Silva (já que nomes como Sá Carneiro, Otelo, Pinto Balsemão, Costa Gomes, Adriano Moreira, ou mesmo Vasco Gonçalves, apesar de bastante importantes, não se podem colocar num mesmo plano).

Em bom rigor histórico, e a comparação pode até ser desagradável, mas o facto é que, por exemplo, Hitler em doze anos mudou radicalmente o Mundo, pelas piores razões, é certo, enquanto que Salazar, quando desceu da cadeira, após quarenta anos dum poder absoluto em tudo semelhante, apenas conseguiu… deixar o “seu” Portugal exactamente no mesmíssimo ponto em que o havia encontrado: pobre, inculto, atrasado e totalmente entregue às garras do fundamentalismo católico.

E, embora aparentemente em paz, pelo menos no Continente e “Ilhas Adjacentes”, potencialmente à beira de um cataclismo social e político terrível, que só a sagacidade e a coragem dos que lhe sucederam foram capazes de evitar!

Estude-se, pois, a História como ela merece. Para não dar lugar a que floresçam desenfreadamente os mitos…

Já quanto ao tal Museu de Samba Comba, duvido que algum dia venha a existir e, mesmo que a C. M. santa-combense o consiga criar, tenho a certeza de que não fará sequer justiça àquele que pretende homenagear, dadas as reconhecidas limitações do Poder Local em tudo o que toca à cultura, para mais fora dos principais centros nacionais de irradiação da mesma.

Mas um Museu Nacional de História Contemporânea, eventualmente com pólos temáticos em Lisboa, no Porto, em Coimbra, como noutros pontos do País, que nos mostrasse objectivamente o Portugal do pós-liberalismo e pós-independência do Brasil, desde que alicerçado em saber científico, rigor intelectual e elevados padrões estéticos, talvez fosse um óptimo meio de conservar e expandir a nossa memória sobre uma época determinante para o nosso presente, contribuindo valiosamente para um maior conhecimento e valorização daquilo que somos e do que valemos enquanto Nação e Cultura, que tanta falta nos faz e cada vez mais fará nesta Europa e neste Mundo crescentemente uniformizados e com as culturas e nações declinantes e mais débeis em galopante crise de identidade...

sexta-feira, março 16, 2007

OS PRINCIPAIS MITOS SOBRE A REGIONALIZAÇÃO (3/5)

Mito II – A insuficiente dimensão do País

O segundo mito principal associado à Regionalização no território continental português é o de que o nosso País não tem a “dimensão mínima” que justifique a sua “divisão” em Regiões Administrativas.

Este mito, logo à partida, não se baseia em nenhum conceito cientificamente comprovado de “dimensão crítica” para a implementação de regiões administrativas num dado País (conceito cujo interesse prático seria aliás nulo) e é imediatamente desmentido pela experiência regionalista de Países muito semelhantes ao nosso, e não apenas em dimensão, como é por exemplo a Hungria.

Por outro lado, este conceito é geralmente brandido de uma forma taxativa, porém bastante simplista, sem ter em conta outros parâmetros intrinsecamente relacionados com o factor dimensão como são, por exemplo, as características orográficas e a existência ou não de barreiras físicas relevantes no território.

Como se sabe, Portugal tem características naturais bastante heterogéneas nestes domínios, apresentando a Sul boas condições para a implantação de modernas vias de comunicação terrestres e fluviais, mas dispondo a Norte e ao Centro, sobretudo no Interior, de uma geo-morfologia adversa a este tipo de infra-estruturas, o que encarece e dificulta o estabelecimento de comunicações fáceis e, consequentemente, o transporte de pessoas e de mercadorias – aspecto de enorme relevância para a avaliação da “permeabilidade” ou da “condutibilidade” de um determinado território.

Por outro lado, são de considerar ainda diversas barreiras físicas importantes, como sistemas montanhosos compactos e vales profundos e muito extensos, como o do Tejo e, sobretudo, o do Douro, que ainda agravam mais estas dificuldades. Os seus efeitos históricos na configuração geográfica e cultural de Portugal são bem conhecidos, estando até na origem de nomes como “Alentejo” e “Trás-os-Montes” e de aforismos como o do “para lá do Marão…”, para já não falar na clássica separação vigente durante grande parte da nossa História entre “Portugal e os Algarves”!

Por tudo isto, dizer simplesmente que Portugal é “pequeno demais” para ser regionalizado é tão falacioso como dizer que a Cidade de Lisboa tem uma “dimensão adequada” para a implantação de ciclovias (experimentem andar de bicicleta no centro de Lisboa, mesmo no “Dia Sem Carros”, e concluam…)!

Mesmo os que afirmam que, com as Auto-estradas e os I. P.’s, ou mesmo a “internet”, as questões espaciais perderam bastante o seu significado de outrora sabem que isso não é assim tão simples, muito pelo contrário: se assim fosse, Portugal, com cerca de dez milhões de habitantes, tal como Nova Iorque, não precisaria de mais do que um Presidente de Câmara!…

Ora os mitos combatem-se com factos.

Quem diz que Portugal é “pequeno demais” para ter Regiões já alguma vez pensou em quantas pessoas da Grande Lisboa vão frequentemente ao Grande Porto e vice-versa, sem ser em lazer (e mesmo assim, tirando o futebol…), já para só falar das duas aglomerações urbanas mais importantes do País?

Pois é, faça-se um estudo sério e aprofundado sobre a mobilidade pendular em Portugal (isto é, as deslocações que se fazem regularmente no dia-a-dia) e muitas destas nossas conversas nunca mais serão necessárias: teremos aí uma radiografia muito eloquente sobre o funcionamento do nosso território, com base na qual se poderia até começar a desenhar o “mapa” regional!

Mas fixemo-nos nos exemplos, próximos e longínquos, que melhor nos podem ajudar a reflectir. Veja-se como uma Região Autónoma espanhola como a Andaluzia, com uma dimensão muito semelhante a Portugal Continental, está estruturada, se não estou em erro (escrevo de memória), em precisamente SEIS PROVÍNCIAS – Huelva, Sevilha, Granada, Córdova, Málaga e Almeria –, número aproximado ao das Regiões previstas no Continente (cinco ou sete, consoante se considerem ou não as A. M.’s de Lisboa e do Porto…)! Mera coincidência?

Ou atentemos no exemplo magiar, um País que, apesar das magníficas condições hidro-orográficas para o estabelecimento de boas vias de comunicação – praticamente todo o território é uma vasta planície, para mais atravessada por um grande Rio navegável (o Danúbio) –, não deixou de ser harmoniosamente regionalizado, por opção própria, ainda antes de sonhar com a integração europeia.

Termino com uma breve explicação da ilustração desta realidade, a foto supra, tirada à entrada da sede do Executivo Regional na Cidade de Miskolc, no Leste da Hungria, capital de uma região pobre (mas orgulhosa do seu Passado e que quer “apanhar o comboio” do Presente), Região cujo nome tripartido, aliás, concilia nada menos do que três realidades regionais prévias historicamente consolidadas, evitando assim uma supressão artificial e tecnocrática das tradições históricas regionais, antes projectando-as confiadamente no Futuro!

Assim como poderia muito bem acontecer, em Portugal, numa solução para o Norte (com ou sem R. M. do Porto) do tipo «Região Douro–Minho–Trás-os-Montes», por exemplo, ou também a dois, no caso duma opção pelo «Ribatejo–Estremadura»…

quinta-feira, março 15, 2007

OS PRINCIPAIS MITOS SOBRE A REGIONALIZAÇÃO (2/5)

Mito I – A unidade nacional em perigo

O principal mito associado à Regionalização no território continental é o do potencial perigo duma desagregação do País. Vários políticos e até intelectuais de elevada craveira estão convencidos de que corremos mesmo o risco de Portugal ver um dia a sua unidade nacional desfeita por acção de forças centrífugas que seriam geradas, conscientemente ou não, a partir dos órgãos de poder das futuras Regiões Administrativas.

Sustenta-se este receio fundamentalmente nos exemplos da vizinha Espanha e da Região Autónoma da Madeira, esquecendo-se que a unidade nacional espanhola já estava em risco antes da instituição das Comunidades Regionais, que não foi de todo agravada por esta reforma – muito pelo contrário, as tensões existentes foram gradualmente sendo transferidas para o jogo político democrático –, que são baseadas em diversidades étnicas e linguísticas que não se verificam em Portugal e, sobretudo, esquecendo-se que as regiões espanholas têm um estatuto de Autonomia, algo semelhante aos das nossas Ilhas, mas que não é de modo algum comparável ao estipulado na nossa Constituição para Portugal Continental, onde as Regiões serão meramente administrativas, ou seja, comparáveis às actuais Autarquias.

Contrariamente, quem esteja familiarizado com a experiência regionalista em quase toda a Europa comunitária sabe que a implementação de Regiões Administrativas em Países semelhantes a Portugal, nomeadamente constituídos por Povos com características étnicas e culturais muito homogéneas – como a França e a Hungria, por exemplo –, não só não pôs minimamente em perigo a coesão desses Estados, como contribuíu muito positivamente para o reforço da identidade e da unidade dos mesmos, através de uma valorização equilibrada e homogénea das suas diferentes parcelas territoriais!

E certamente que um francês não se sente nem um milímetro menos francês por se sentir mais orgulhoso da sua Região, seja ela o Languedoc ou o Rossilhão (tirando talvez uma meia-dúzia de idealistas na Bretanha…), assim como nenhum dos nossos avós se terá sentido menos português quando foram instituídas as célebres Províncias, já que não há qualquer incompatibilidade entre ser-se alentejano, minhoto, duriense ou ribatejano de boa cepa e sentir-se muito orgulhosamente português!

Mais complexa será a situação especial do Arquipélago da Madeira, onde um certo excesso de vedetismo dos políticos regionais terá já criado a sensação incómoda (e bem real?) de que os madeirenses têm hoje já mais orgulho na sua Região Autónoma do que no seu País.

Mas a ser assim, então melhor será que o admitam frontalmente, quanto antes, para se encararem as soluções políticas óbvias para esse sentimento, que só poderiam resultar numa total independência do Arquipélago, ao que aliás não parece haver grande oposição em Portugal Continental e nos Açores, obviamente desde que seja essa a vontade do eleitorado madeirense democraticamente expressa nas urnas.

Contudo, e se não for esse o caso, então o referido excesso de vedetismo deverá ser de imediato ponderado e refreado, não só para não se instalarem este tipo de dúvidas, como sobretudo para evitar que esse sentimento de incomodidade continue a pairar, muito negativamente, por sobre a discussão sobre a Regionalização!

Porém, ainda muito mais grave do que isso seria a instalação, na mentalidade dos portugueses, da suspeita de que a Regionalização seria vista por alguns como um autêntico “cavalo de Tróia” para a afirmação de interesses meramente locais ou regionais, que se pretenderiam ilegitimamente sobrepor ao superior interesse nacional! Falemos claro: a maioria das pessoas que votaram “não” no anterior referendo fê-lo com esse mesmo receio. Pior do que isso: a maioria das pessoas que possui esse receio desconfia de que, mais a Norte do que a Sul, apenas se defende cinica e estrategicamente a Regionalização como melhor forma de se poder “passar por cima” do Governo português!

E a verdadeira Regionalização não é nem pode vir a ser nada disto, uma Regionalização séria não poderá nunca padecer do “síndroma madeirense”, pois se alguém se sentir, por exemplo, mais “nortenho” ou mais seja lá o que for do que português, então esse alguém é um MAU DEFENSOR DA REGIONALIZAÇÃO e deve, em vez de afirmar defendê-la, ser coerente, intelectualmente honesto e suficientemente corajoso para propor a separação de Portugal em dois (ou mais) novos Países!

Porque a realidade é que, sem esta clarificação, nunca se conseguirá desvanecer o receio de que isto aconteça, um dia, nas pessoas que votaram “não” por este motivo! E só enfrentando e desmentindo cabalmente esta suspeita é que esses votos poderão alguma vez ser conquistados pelo “SIM” à Regionalização, de preferência já no próximo Referendo! Só confiando seguramente que os regionalistas, de Norte a Sul, são tão (ou mais) portugueses do que os “anti-regionalistas” é que este primeiro mito será definitivamente desfeito!

Por isso cabe-nos a todos nós, beirões, trasmontanos, lisboetas, algarvios, portuenses e por aí fora, defensores acérrimos ou críticos dessa grande reforma do Estado que será a implementação das Regiões Administrativas no território continental português, deixar bem claro, sem margem para dúvidas, de que, em qualquer circunstância, poremos sempre o interesse nacional acima dos interesses regionais!

Da mesma forma, bem entendido, e com toda a coerência devemos demonstrar que, em todas as circunstâncias e seja qual for a fórmula encontrada para a sua “instituição em concreto”, os interesses da nossa Região terão SEMPRE de sobrepor-se aos interesses dos seus Municípios! Como logicamente os interesses concelhios se deverão sobrepor aos da nossa Freguesia. Só assim, aliás, haverá legitimidade para exigir a aplicação rigorosa do princípio da subsidiariedade!

Só desta forma, insistindo e respeitando esta perspectiva pedagógica, honesta e coerente de hierarquização administrativa, se poderão conquistar as mentes e os corações dos que ainda vivem à sombra deste mito e que, por esse motivo, temem o fim da unidade de Portugal por causa da Regionalização…

OS MITOS SOBRE A REGIONALIZAÇÃO (1/5)

Introdução

Fala-se aqui sempre das vantagens e benefícios da implementação da Regionalização em Portugal Continental, mas a verdade é que muito pouco se tem escrito sobre os principais argumentos dos seus detractores, ou dos que simplesmente se declaram cépticos. Talvez seja tempo de analisar e ter em conta estes argumentos, para se procurar compreender melhor “o outro lado” desta questão.

Para as pessoas que são contrárias à Regionalização, ou se manifestam muito cépticas – mas não por qualquer razão egoísta ou de interesse próprio, antes de um modo convicto e intelectualmente honesto –, parece-me serem QUATRO os principais argumentos de que se socorrem para justificar essa sua posição: 1) O fomento da desunião nacional; 2) O aumento da despesa pública; 3) A pequena dimensão do País e 4) A inexistência de uma proposta de implementação razoável.

Como eu também estou nesta discussão de boa-fé e sem qualquer interesse pessoal, a não ser a um nível meramente intelectual, incomoda-me o facto de o debate emperrar quase sempre nestes quatro argumentos “fatais”, quanto a mim muito mais por culpa nossa, já que talvez não os valorizemos e contradigamos na sua justa e necessária medida.

Como, por outro lado, estou convencido de que esses argumentos são facilmente rebatíveis usando apenas a lucidez e a lógica cartesiana, sem necessidade de ir tirar nenhum curso superior (ou de “doutrinação” ideológica…), prefiro ao invés designar esses argumentos por “mitos”, pois me parece que foram artificialmente originados por quem não está, por uma razão ou por outra, interessado no avanço desta reforma essencial para a modernização do País.

Urge assim “desmistificar” estes quatro “argumentos-mitos”, para que a discussão sobre este tema – que estará já “amanhã” na ordem do dia! – possa, enfim, recentrar-se num nível racional, desapaixonado e construtivo, antes de se passar à fase das grandes (e irreversíveis) decisões políticas e eleitorais.

(continua)

sexta-feira, março 09, 2007

MANUAL ÚNICO DE HISTÓRIA EUROPEIA?


O conhecido programa matinal “Forum”, da «TSF», debateu ontem a ideia do Governo alemão (supostamente apoiada já pelos da França e da Espanha) de criar um Manual escolar único para a História Europeia, pelo menos no período do pós-guerra, a adoptar por todos os países da União.

Como seria de esperar, a grande maioria das opiniões expendidas no citado programa foi contrária a esta ideia, apesar de algumas vozes se terem manifestado, em princípio, a favor da mesma ou, no mínimo, a terem considerado aceitável e compreensível.

Eu, pelo contrário, não consigo alinhar por este diapasão geral (pelo menos de quem se manifestou no referido programa) de rejeição e de crítica liminar a esta proposta, por diversos motivos que tentarei explicar.

Há dois prismas fundamentais que devem ser tidos em conta nesta questão: o pedagógico e o ideológico.

Quanto ao primeiro, concordo que a imposição de um Manual escolar único no ensino básico e secundário seja uma discussão importante, mas diferente, porque extravasa a disciplina de História (pode, aliás, aplicar-se a todas) e, consequentemente, esta questão concreta. Não vale a pena por isso discuti-la agora aqui. Passemos então de imediato ao cerne da questão: o aspecto IDEOLÓGICO.

Numa primeira abordagem ao assunto, não considero esta ideia da Chanceler alemã mesmo nada descabida, antes pelo contrário, acho até perfeitamente natural que todos os Governos da União Europeia decidam fomentar a criação de um Manual unificado sobre a nossa História comum – e, diga-se de passagem, não só a mais recente –, que possa ter qualidade científica e didática para ser proposto às autoridades educativas de cada Estado-membro como uma das alternativas de adopção por parte das respectivas Escolas.

Já me parece um pouco difícil, se não mesmo impossível, exigir que esse Manual seja de facto obrigatório e único em toda a União, pois o monolitismo e a imposição de uma cultura “oficial” não são reconhecidamente os valores sobre os quais deve assentar a construção europeia.

Mas outra coisa muito diferente é a forma instintiva, subjectiva e primária como vi gente ilustre e conceituada, como por exemplo o emérito Prof. Viriato Soromenho Marques, entre tantos outros (nomeadamente professores de História), reagir a esta ideia, como se de um autêntico crime de lesa-pátria(s) se tratasse! Parece-me detectável aí um certo excesso de patriotismo, se não mesmo um nacionalismo pacóvio, se bem que envergonhado e não assumido, e um lamentável pendor passadista (e até provinciano), face a uma ideia que me parece louvável e inovadora, se bem que, não tenhamos dúvidas, seja de concretização seguramente árdua e morosa.

Parto obviamente do princípio – e nem me passa, aliás, pela cabeça que possa ser de outro modo – que este Manual de História será não apenas elaborado por historiadores de grande craveira e prestígio (note-se, nem sequer necessariamente europeus!), como o mais possível isento e imparcial, como aliás toda a narrativa histórica que se preze deve ser.

E recordo, a propósito, que da Bibliografia aconselhada, nos meus já distantes tempos do Curso Geral dos Liceus, sobre História Universal não constava NENHUM AUTOR PORTUGUÊS! Será que esses livros, por serem de autores estrangeiros, não teriam imparcialidade, qualidade científica e pedagógica, rigor histórico? E, por outro lado, terá recentemente sido concluída alguma “História da Europa”, de origem portuguesa, que nos faça “justiça” e evite assim que possamos ser remetidos, como alguém dizia ontem, para “duas ou três páginas” face às “quarenta” sobre a Espanha e às “mais de cem” sobre a França e a Alemanha?

E já agora também pergunto: será que os ilustres historiadores e professores portugueses de História (ou da História portuguesa) estão satisfeitos com a forma como a mesma era, ainda há poucas décadas (e continua a ser?), ensinada nas nossas Escolas? Se assim é, isso só pode significar que estão contentes com a forma como a verdadeira História do território que hoje é Portugal NÃO é ensinada aos alunos do ensino básico, secundário e, quem sabe, também nas próprias Universidades!

Se for esse o caso, então sempre lhes digo que, do meu modesto ponto de vista, NÃO TÊM QUALQUER MORAL para rejeitarem uma História da Europa feita seja lá por quem for, desde que com base em rigor científico, isenção e imparcialidade!

Quem vive satisfeito a ensinar (ou a aprender, ou até a discutir) uma História que só nos dá a visão dos vencedores e que omite toda a realidade (e todas as fontes, nomeadamente as orais!…) para além dessa visão e que, por isso mesmo, não é sequer digna de ser considerada História, não tem autoridade para se ofender com uma pretensa “usurpação” da nossa História por parte das instituições europeias!

Quando a nossa juventude continua a ser literalmente intoxicada com as mentiras oficiais sobre a “Reconquista aos Mouros”, sobre a “Gesta das Descobertas”, sobre o “domínio filipino”, sobre a “Aliança Luso-britânica” (a aliança militar “mais velha do Mundo”…), ou mais genericamente sobre esta “velha Nação com oito séculos de História”, está de facto, acima de tudo, a contribuir para a propagação de uma ideologia específica, uma ideologia que por acaso até é profundamente nacionalista, racista e xenófoba, portanto CONTRÁRIA AOS ACTUAIS VALORES DA DEMOCRACIA, DA LIBERDADE E DOS DIREITOS HUMANOS sobre os quais se funda a construção da EUROPA DO FUTURO!

E é aqui que as coisas adquirem os seus verdadeiros contornos: será admissível continuar a propagandear dentro das fronteiras da U. E. este tipo de ideologias, utilizando alegremente para tal dinheiros públicos europeus, sendo estas objectivamente CONTRÁRIAS ao espírito europeu? Os alemães, que pagam bastante do que nós hoje “somos”, acham que não. E muito bem, acrescento eu. Pelos vistos os franceses pensam o mesmo, e até os nossos vizinhos e irmãos espanhóis (muito mais evoluídos do que nós) concordam!

Nós não, pois claro. Como somos “os maiores”, fazemos coro com algumas das nações mais desnorteadas e patéticas da Europa actual, como a Polónia ou a República Checa (a “nova Europa”, como lhes chama G. W. Bush…), e tentamos simplesmente fazer aquilo em que nos tornámos dos maiores peritos no Mundo: MANTER TUDO COMO ESTÁ, para que ao menos o Futuro nunca cá chegue, já que infelizmente não há maneira de conseguirmos operar o milagre de FAZER COM QUE O PASSADO REGRESSE, que é verdadeiramente, admitamo-lo, o nosso maior e mais inconfessado sonho!

Para uma Nação que há séculos vive obcecada e paralisada pela memória do seu passado grandioso e não se interessa peva pelo seu futuro, para um Povo que, no dizer de um conhecido filósofo actual, vive o presente com “medo de existir”, é natural que uma ideia que contenha em si algum “gérmen” de progresso, alguma perspectiva minimamente inovadora sobre seja o que for, seja de imediato apontada como “perigosa”. Eles bem sabem porquê…

Mas bastava a esta gente de curtos horizontes olhar um pouco à sua volta para perceber que, no Mundo actual, não sobra lugar para este tipo de entendimento da História, que o Mundo do Futuro, que queremos melhor, mais pacífico e mais justo (pelo menos nós que temos filhos), não pode ser construído com base em ideologias ultrapassadas e condenadas pela evolução da Humanidade, mas sim pela supremacia dos valores morais e intelectuais que, em grande parte, são e foram desde sempre apanágio da nossa Civilização que, como se sabe, recebeu e continua a receber da cultura europeia alguns dos seus maiores contributos!

Isto obviamente sem prejuízo de se valorizarem, na justa medida, as diferentes formas culturais e tradições europeias – e um patriotismo saudável pode e deve ser cultivado, mas apenas enquanto amor e respeito pela nossa cultura, pelas nossas gentes e pelo nosso território, não como ódio ou receio do que é estranho, “de fora”, ou diferente.

Lembremo-nos de que a ideia de Europa não nasceu ontem, nem sequer no século passado! Já os romanos possuíam uma certa forma de cidadania europeia, que era oferecida mesmo às populações vencidas que assim o desejassem! Que as Igrejas cristãs (ortodoxa e católica, sobretudo) cimentaram toda a sua estrutura e hierarquia numa base supra-nacional (e usando até uma língua “neutral”, como o Latim!), que já os próprios Cruzados combatiam sob bandeiras e estandartes próprios (a cruz de Cristo) e sem referências nacionais ou étnicas, e assim por diante.

E, quer se queira quer não, as realidades do Mundo actual desmentem os que ainda julgam possível manter a História como fonte de legitimização para os Estados do futuro e continuar a mesma a ser feita e ensinada com base em perspectivas e pontos de vista nacionais (ou nacionalistas): basta aliás sintonizar na televisão o canal “História” para se ter já hoje ao dispor, em casa, uma forma de “Manual único” sobre a História europeia e universal, onde mesmo os acontecimentos mais delicados são apresentados com todo o rigor e isenção, apesar de sob uma perspectiva reconhecidamente “americanocêntrica”!

Mesmo assim, não acredito que algum espírito francês ou inglês se escandalize com a forma como, por exemplo, é tratada neste canal a célebre Batalha de Azincourt, ou que algum cidadão alemão se revolte contra as sempre continuadas revelações sobre o nazismo, ou que algum espanhol se indigne se algum dia lá aparecer uma reconstituição da derrota da “sua” Invencível Armada, ou até, quem sabe, da... Batalha de Aljubarrota!

Mas quando, quando poderão os portugueses reagir da mesma maneira se um dia lhes for mostrada de forma isenta a Batalha de Alcácer-Quibir, a aniquilação dos reinos africanos nos Séc.s XV e seguintes (em particular o do Zaire), a feroz conquista de Malaca, a destruição da cultura ameríndia no Brasil, a devastação do território nacional causada pelas “lutas” ditas liberais (que foram, na realidade, uma autêntica guerra civil), ou mesmo toda a verdade sobre o Estado Novo e a Guerra Colonial?

Na já longínqua «Expo’92», em Sevilha, no auge da enorme vaidade ibérica relacionada com as comemorações dos quinhentos anos de “descobertas” várias – América, caminho marítimo para a Índia, Brasil, etc.… –, uma só frase, escrita à entrada do muito interessante mas sóbrio pavilhão da Alemanha (apesar de recém-unida e com o orgulho nacional no seu apogeu desde 1945), deitava subtilmente por terra todo esse triunfalismo balofo e risível dos luso-castelhanos:
«– O MAIS IMPORTANTE NÃO É A DESCOBERTA EM SI, MAS SIM O QUE CONSEGUIMOS FAZER COM ELA!»...

Ant.º das Neves Castanho.

terça-feira, março 06, 2007

O NOVO PORTUGAL!




Nas sociedades humanas, como nas ondas do mar, por baixo da aparente superfície da realidade (que os meios de comunicação não se cansam de nos revelar) há “correntes de profundidade” muito fortes e que são, no fundo, aquilo que realmente condiciona o movimento ondulante das superfícies, mas que, por geralmente negligenciadas, são muito menos conhecidas e só se tornam apercebidas, de tempos a tempos, pelos efeitos visíveis que provocam, quase sempre inesperados, tantas vezes surpreendentes.

Tem isto a ver com os resultados do último referendo nacional, que a meu ver são objectivamente muito mais fruto da forma como tem evoluído, em profundidade, a sociedade portuguesa nos últimos anos, do que propriamente da actual conjuntura política, ou mesmo da própria campanha política que antecedeu esta votação.

Talvez por isso, mais ainda do que surpreendidos pelos resultados, os defensores do “não” (e suspeito que até os do “sim”) terão ficado perplexos com a evidente ineficácia e o comprovado desajustamento da campanha que efectuaram, tanto ao nível das mensagens e linhas de força ideológicas veiculadas, como da linguagem e do “tom” da sua propaganda e, mais ainda, até dos principais “rostos” que deram visibilidade pública ao “não”.

Tudo isto num País onde, ainda há menos de dez anos, a mesmíssima pergunta suscitou não só muito menos participação na votação – sinal claro de acomodação com a situação legal vigente –, como teve resultados quase simétricos!

Estará assim na altura de perguntar: porque terá falhado agora o que, ainda há menos de dez anos, provou ser tão eficaz nos dois referendos então realizados em Portugal (que foram ambos vencidos pela mesma área político-social)? Ou antes:

– O QUE FEZ MUDAR TANTO A SOCIEDADE PORTUGUESA NOS ÚLTIMOS DEZ ANOS?

Seja lá o que for, os estrategos da política e do “marketing” social parece não o estarem a compreender adequadamente. E a sensação que fica é a de que um certo tipo de mensagens, perfeitamente válidas para outrora, têm cada vez menos destinatários na actual Sociedade portuguesa...

Sendo esta, tecnicamente, matéria nuclear da competência da Sociologia, seria de esperar uma resposta cabal, ou no mínimo pistas de esclarecimento úteis, por parte desta disciplina. Parece-me, contudo, que os caminhos que a mesma vem de há muito trilhando, pelo menos no nosso País, lhe conferem um carácter muito mais de ciência descritiva (“Sociografia”?) do que propriamente explicativa, daí que não seja nada fácil, pelo menos ao cidadão comum, socorrer-se desta área do saber para começar a penetrar nos mistérios das profundezas do Portugal contemporâneo, enquanto sistema social.

Assim, caso pretendamos ver mais além do que as estafadas “análises políticas” dos costumeiros “papagaios de serviço” nos nossos meios de comunicação social ditos de “massas“, resta-nos socorrermo-nos nesta tarefa da velha bússola (falível, admito-o) do empirismo.

Sendo contudo indispensável assegurar níveis mínimos de eficiência semântica num suporte tão delicado, neste aspecto, como é a “net”, limitar-me-ei a sintetizar aquilo que me parece serem as tendências predominantes detectáveis na evolução da Sociedade portuguesa nos últimos, digamos, vinte anos – tempo aproximado que decorreu desde a nossa já distante adesão à “Europa” (reconhecidamente o marco histórico, político e social mais importante para a Sociedade portuguesa, no seu conjunto, desde o 25 de Abril).

Portugal urbanizou-se e tornou-se uma Sociedade mais cosmopolita:

A percentagem de pessoas que vivem em aglomerados urbanos de média ou grande dimensão não parou de crescer, ou seja, a população rural entrou em irreversível declínio numérico, percentual e até etário (é cada vez mais idosa). Isto tem, logo à partida, implicações directas ao nível da “abertura” e da “evolução” das mentalidades, decorrentes sobretudo da complexificação e da intelectualização a que a experiência urbana submete a vida das pessoas, nomeadamente afastando-as das realidades sociais primárias, ligadas à produção dos bens de sobrevivência, à proximidade com a Natureza e à predominância dos relacionamentos pessoais de tipo familiar e vicinal.

Os portugueses estão mais escolarizados:

Aumentaram drasticamente os níveis gerais de alfabetização, de escolaridade mínima e, cumulativamente, de formação universitária (e até pós-universitária), com muito particular expressão no caso da população feminina. Apesar de alguns “contra-fenómenos” a ter em conta, como os preocupantes níveis de iliteracia (a que me permito acrescentar os de “inumeracia”, mais desconhecidos mas não menos alarmantes), esta evolução, que já vem desde a Revolução de Abril mas que se acentuou nas últimas décadas, foi igualmente determinante para a mutação do tecido social no período em análise, tendo tendência para se estabilizar nos anos mais próximos.

As portuguesas estão mais activas:

Isto é uma realidade inquestionável face ao que era a nossa Sociedade, sobretudo antes do 25 de Abril, e tem expressão a dois níveis diferentes, mas de efeito concorrente: não só existem muito mais mulheres trabalhadoras (menor percentagem de “domésticas”), como sobretudo existem muitíssimo mais mulheres em profissões antes quase exclusivas dos homens e, mais ainda, em cargos de elevada responsabilidade, quer ao nível das empresas privadas, quer principalmente na Administração e nas empresas públicas.

Os portugueses estão mais prósperos:

Se bem que na última década se constate uma forte tendência de estagnação, a verdade é que o nível de vida dos portugueses foi alvo de significativas melhorias desde o 25 de Abril, sentidas com particular expressão na primeira década da nossa integração europeia e com reflexos bastante visíveis ao nível dos hábitos de consumo e dos padrões de vida dos portugueses em geral.

Os portugueses viajam mais:

Consequência imediata, entre outros, dos parâmetros anteriores, mas com uma influência muito especial sobre as mentalidades, dada a importância que a percepção directa de outras realidades pode ter na capacidade de problematização e avaliação das realidades nacionais. E este aumento do conhecimento concreto sobre outros Povos e outros Países resulta não apenas das duas motivações “tradicionais” do viajar – em férias, ou pela emigração (que continua a existir, se bem que com outras características) – mas agora também, cada vez mais, por motivo de trabalho (ou negócios) e estudo, sendo cada vez maior o número de portugueses que viaja por estes motivos.

Os portugueses estão mais bem informados:

Fruto sobretudo das mudanças operadas nos meios de comunicação social, em especial após a “liberalização” da rádio e da televisão, há cerca de quinze anos, mas substancial e qualitativamente reforçadas com a propagação e generalização do acesso à “internet”, cujos efeitos se começam agora a fazer sentir com crescente acuidade. Este aumento e diversificação das fontes de informação tem como uma das consequências principais a perda de influência dos poderes mediáticos “tradicionais”, como eram os jornais, as estações de rádio e televisão “oficiais” (ou “oficiosas”) e, convém não esquecê-lo, as hierarquias religiosas (onde avulta a importância, sem par em Portugal, da Igreja Católica).

Os portugueses estão mais “terciarizados”:

É inegável que a redução drástica dos activos do sector primário e uma relativa estagnação da percentagem de activos no sector industrial provocou um crescimento exponencial dos empregados no sector dos serviços e do comércio, cujo “estilo de vida” induz naturalmente alterações consideráveis naquilo que se poderia designar como a “personalidade social” de comunidades em que predominam os “empregados de escritórios”, os “agentes comerciais”, as profissões “técnicas”, os “profissionais liberais”, os “empresários”, etc., face ao que era a vivência social associada à produção agrícola, pecuária, florestal, piscatória, ou mesmo a das comunidades mineiras. Esta mutação tem talvez como consequência mais determinante uma enorme diferenciação individual e uma pulverização da identidade social em sub-culturas e suas derivadas, por comparação com os tempos em que a Sociedade estava muito mais uniformizada e homogénea, porque fortemente estruturada com base em características identitárias comuns como eram, por exemplo, a “terra” de origem, a profissão (ou “corporação”) e a classe social, que possuíam culturas e interesses semelhantes e, consequentemente, comportamentos sociais mais ou menos padronizados.

Os portugueses estão menos religiosos:

Evidência da maior relevância para a análise das mutações sociais que se vêm verificando em Portugal, dadas as profundas implicações de teor comportamental e mental que estão associadas a esta realidade, tida por irreversível e comum em toda a Europa e que me dispenso de desenvolver aqui (só a análise deste parâmetro seguramente daria para vários doutoramentos em Sociologia…).

Os portugueses estão mais “civilizados”:

A adopção da forma democrática de governo e a nossa posterior integração no espaço legal (e “mental”) europeu conduziram a Sociedade portuguesa a práticas e a hábitos que lhe eram até então estranhos, como a participação cívica e eleitoral, a liberdade de expressar e discutir os assuntos públicos, a consagração do direito de livre associação e a consequente proliferação da realização de assembleias gerais (com as suas regras muito próprias), a começar nas escolas e universidades, mas depois nos clubes, nas associações culturais e profissionais, nas empresas de tipo “S. A.” e, até, nos cada vez mais generalizados condomínios onde moramos, tiveram como consequência uma mudança drástica e profunda no modo paradigmático de encarar a conflitualidade social, que transformou de cima a baixo, se bem que imperceptivelmente, toda a Sociedade portuguesa.

Os portugueses estão mais em contacto com estrangeiros no seu próprio território:

Consequência de Portugal se ter transformado, de há quinze anos a esta parte, num País também de Imigração (e após o impacte semelhante que tivera, nos anos setenta, o fenómeno dos “retornados” de África), o contacto banal com trabalhadores e estudantes estrangeiros – mais ainda do que o muito localizado (e já adquirido) contacto frequente com turistas (aliás, quase exclusivamente oeste-europeus) – estendeu-se a todo o território nacional e, sobretudo, a todas as classes sociais e níveis etários, contribuindo (a par do referido aumento do número de viagens ao estrangeiro) para um cada vez maior conhecimento de realidades e culturas até então quase totalmente ignoradas da generalidade dos portugueses, como por exemplo a indiana, a chinesa, a ucraniana, a romena e, até, a brasileira, na sua vastidão e diversidade...

Os portugueses estão mais “motorizados”:

Poderá à primeira vista parecer menos importante nesta análise, mas a inversão, operada em Portugal nestas últimas duas ou três décadas, da relação percentual entre os utentes habituais dos transportes públicos e os do transporte individual – com o aumento extraordinário das taxas de motorização (posse de viatura própria) e dos índices de utilização do carro particular –, teve igualmente como efeito uma sensível mudança de mentalidade dos portugueses, que tende cada vez mais a incorporar elementos de individualismo, exibicionismo, hedonismo, etc., do que em épocas anteriores a estes fenómenos, onde ainda eram detectáveis marcas indeléveis de um espírito de colectivismo, ou cooperativismo, e de outras manifestações de uma certa cultura “popular”, ou de matriz marxista, então predominantes, muito na sequência da “revolução social e sexual” dos anos sessenta (como se sabe, tardiamente importada em Portugal), as quais hoje, aparentemente, já só encontram “refúgio” em certas formas de voluntariado social.

Os portugueses estão bastante mais cépticos:

Com o desmoronar das “certezas” ideológicas, tanto políticas como religiosas, o cidadão comum procura referências novas que o ajudem a encontrar soluções para os problemas e desafios do presente, tanto a nível colectivo como sobretudo familiar e pessoal, mas com um sentimento crescente de incredulidade, desencanto e criticismo, que por vezes se pode revelar algo impeditivo de exercícios mais lúcidos de análise e de atitudes de reacção mais prontas e, sobretudo, mais convictas. Há de facto, em Portugal, uma grande crise mental (eu diria mesmo MORAL), alimentada por toda a espécie de “doenças” e outras patologias sociais recentes que vêm atormentando as consciências dos portugueses e aglutinando nuvens de preocupação sobre o seu futuro, desde a corrupção em vários níveis (políticos, em especial os autarcas, futebol, forças policiais, de fiscalização e outros serviços públicos…), passando pelas constantemente aludidas crises na Educação, na Saúde, na Justiça e na Segurança Social, até ao exemplo mais emblemático de toda esta sintomatologia que é, indubitavelmente, o caso de pedofilia vulgarmente designado pelo nome da mais famosa instituição portuguesa de acolhimento para menores desvalidos, o qual mistura chocantemente figuras do mundo da política, do dinheiro e do poder (sobretudo mediático).
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Caldear sabiamente tudo isto e ganhar perspectiva de análise para poder extrair conclusões válidas parece ser a única forma de começar a compreender melhor o que somos e no que nos estamos a tornar, nestes alvores do Séc. XXI, de modo a podermos talvez encarar o futuro com mais optimismo e seriedade, ultrapassando de vez os mitos "patrioteiros" e pretensamente históricos com que em tempos nos pretenderam tudo explicar, mas também esta nova e incómoda sensação de nos estarmos sempre todos a enganar uns aos outros, para melhor escaparmos ao nosso triste “fado”, naquela angústia indefinível e tão bem alcunhada por um dos nossos maiores pensadores da actualidade como “O MEDO DE EXISTIR”…